«Damos um passo em frente e logo a seguir damos dois passos atrás»
Há 25 anos atrás, cansado da vida previsível num país sobrepovoado como a Holanda, decidi pegar na mochila a procurar um lugar afastado da confusão. Como tinha estado a trabalhar numa quinta de agricultura biológica de um amigo meu a 20 quilómetros de Amesterdão, tentei comprar uma pequena propriedade o mais afastada possível dos grandes centros metropolitanos da Europa.
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Por milagre, consegui realizar este sonho impossível, já que a minha carteira continha apenas algumas dezenas de contos. Acabei por ser proprietário de uma casinha minúscula perto de Arganil, no centro de Portugal e, com ajuda da população local envelhecida, construí uma vida praticamente autossuficiente, baseada na simplicidade extrema. Após quatro anos, problemas com fogos florestais e plantações de eucaliptos fizerem-me decidir atravessar o Oceano Atlântico e procurar a sorte nos Açores.
A minha primeira filha, na altura com um ano de idade, inspirou-me na altura para me dedicar ao artesanato, em particular ao fabrico de brinquedos em madeira. Quando mudei para a ilha do Pico, consegui sobreviver juntando diversas actividades como a pesca, o artesanato, a apicultura e a agricultura biológica.
Depois de seis anos a viver na fantástica freguesia da Piedade, tomei rumo em direção à ilha de São Miguel, pensando em oferecer um melhor futuro para os meus entretanto dois filhos. Também senti a vontade de aproveitar os conhecimentos adquiridos na área da agricultura biológica para tentar constituir uma empresa economicamente viável vendendo produtos biológicos que, na altura, não estavam disponíveis no mercado.
Mesmo conseguindo comprar a Quinta do Milhafre, pôr uma coleção vasta de produtos biológicos certificados no mercado, os problemas no processo de comercialização e um público ainda não preparado não facilitou a minha tentativa de encontrar uma forma de sobrevivência económica.
Durante um dia de visita aberta à Quinta do Milhafre, no início deste século, recebi também a visita do secretário regional da Economia da altura e o mesmo, impressionado com o trabalho que desenvolvi na quinta, convidou-me para criar uma rede de percursos pedestres na Região. Não pensei muito e decidi agarrar esta oportunidade de conhecer melhor as outras ilhas e de criar uma coisa de raiz que fazia muita falta numa região onde o turismo vindo do exterior estava apenas a nascer.
Obviamente a mudança no ambiente de trabalho era enorme. A grande diferença cultural entre a Holanda e os Açores não se tinha manifestado muito porque eu tinha trabalhado de forma mais independente sendo pastor de cabras, pescador, artesão e agricultor.
Ao criar uma coisa completamente nova dentro de uma estrutura pouco eficiente como a função pública, surgiram inevitáveis conflitos entre um holandês habituado a realizar os desejos com uma atitude transparente e teimosa, por um lado, e um conjunto de instituições constituídas por pessoas habituadas a navegar de forma despercebida.
Só nesta altura as diferenças culturais começaram a manifestar-se de forma mais intensiva, pois não é habitual ter um estrangeiro a trabalhar num mundo exclusivamente açoriano. Nem sempre fui recebido da melhor maneira, mas tentei não ligar demasiado às reações menos corretas e concentrei-me mais na realização das tarefas e nas forças positivas.
O ritmo de avanço era bem diferente do que na altura em que trabalhava independentemente e até hoje tenho a sensação de que cada passo para a frente é seguido por dois passos no sentido contrário. Já me adaptei em muitas situações à cultura local, mas certas atitudes simplesmente não encaixam na minha educação cultural. A observação de comportamentos inaceitáveis por parte daqueles que estão no poder provoca sempre uma certa rebeldia dentro de mim.
Custa-me ver como a grande parte dos portugueses vive em condições mínimas inaceitáveis enquanto uma pequena fatia da população apanha os frutos do abuso de poder. Noto diariamente que a democracia em Portugal é recente e tem um longo caminho para andar no processo de maturação. Esta situação só pode mudar quando as pessoas se livrarem dos restos da ditadura relativamente recente e perderem o medo de se manifestarem.
Não acredito que um estrangeiro possa, ou até deva, tentar mudar um país, criticando o lugar onde foi bem recebido pela maioria das pessoas, mas acredito que possa ajudar neste processo de libertação mostrando exemplos positivos que já tenha vivido de outra forma no seu país de origem.
A principal razão que me fez mudar para os Açores foi sem dúvida a sua riqueza natural. Tal como muitos países do Norte da Europa, a Holanda sofreu consequências graves para o seu património natural durante a revolução industrial. Vimos nascer o betão por cima das florestas e pântanos durante muitos anos. Os lençóis de água ficaram gravemente poluídos com o excesso de resíduos resultantes de uma indústria pecuária demasiado intensiva. A água dos grandes rios chegou à Holanda de tal maneira poluída que o fornecimento para consumo humano estava em perigo.
Actualmente estamos a ver uma recuperação da Natureza lenta e cara. Percebemos tarde de mais que estragar é muito mais fácil do que recuperar. Custa-me muito ver como nos Açores se está a estragar o seu património natural, numa velocidade assustadora. A riqueza natural é o único recurso que o arquipélago tem. Se não for o turismo de natureza, não estou a ver outra fonte de rendimento para o futuro. A indústria pecuária só sobrevive com injeções financeiras a partir do exterior, enquanto o turismo é um produto de exportação.
A posição geográfica dos Açores entre os dois continentes é normalmente vista como uma barreira que dificulta o seu desenvolvimento. Mas em vez de chorar inteiramente sobre este facto, podemos também procurar as vantagens da situação.
Depois de 12 anos a trabalhar para o Governo Regional na área do turismo de natureza, decidi o ano passado avançar com a minha própria empresa especializada em observação de aves. A localização do arquipélago tornou-o num destino de excelência para encontrar aves raras do continente americano. Tenho feito uma campanha para o exterior sobre este valor acrescido da Região e os resultados estão à vista. Talvez seja mais fácil encontrar estas mais-valias para alguém que nasceu fora da Região.
Lembro-me há anos atrás quando vivia na ilha do Pico, um cidadão estrangeiro descobriu os Açores como destino para observar cetáceos. Na altura era considerado uma ideia maluca e quem olha hoje em dia para esta actividade pode ver os benefícios que este actividade trouxe para o desenvolvimento económico. Houve um aumento explosivo de empresas e até existe urgentemente a necessidade de pôr um travão para evitar consequências nefastas para os animais, o que por sua vez acabaria com a própria actividade.
A observação de aves felizmente nunca vai ter esta dimensão mas é assustador como os poucos habitats de aves são destruídos ou perturbados em projectos de “requalificação” à velocidade da luz. Estamos a direcionar-nos para uma situação em que os turistas são encaminhados para Centros de Interpretação de betão onde podem ver fotografias de paisagens que existiam antes das intervenções e que já nada têm a ver com a paisagem açoriana.
Ainda existe muita Natureza nos Açores, mas estamos a matar a galinha dos ovos de ouro. A iniciativa de acabar com estas barbaridades tem de partir dos açorianos, tenham eles nascido em Rabo de Peixe, Madalena do Pico, Ponta Delgada ou, até, em Amesterdão.
Artigo de opinião de Gerbrand Michielsen (guia de observação de aves), na edição de 26 de Abril do semanário «Mundo Açoriano».
Saudações florentinas!!
1 comentário:
Artigo de grande lucidez.
Oxalá sirva de tema de reflexão nas Flores.
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