terça-feira, 4 de junho de 2013

«Brumas e Escarpas» #60

Armas de sabugueiro e cadeirinhas de junco

Talvez porque ainda pairasse sobre nós o espectro da segunda Guerra Mundial, talvez porque ouvíamos muitas estórias e relatos sobre piratas que antigamente atacavam a ilha, não apenas a população mas também muitos navios que por ali passavam, carregados de mercadorias que vindos das Américas demandavam as Flores na procura de rumo que os guindasse nas sendas das rotas europeias e norte-africanas, talvez por se encafuar no nosso subconsciente que a história da humanidade era um relato permanente de batalhas e guerras, talvez por isto e por aquilo e talvez por coisa nenhuma, mas simplesmente porque havíamos de construir os nossos próprios brinquedos com o material de que dispúnhamos, uma das brincadeiras muito frequentes das crianças, nos anos 1950 na ilha das Flores, era a da construção de armas de sabugueiro, com balas de raiz de cana roca, de bagas de sanguinho e de zimbro, com as quais nos entretínhamos a dar tiros contra tudo e contra coisa nenhuma e, sobretudo, a ouvir o estrepitante estalido das ditas cujas quando disparavam.

Fazer uma arma de sabugueiro era fácil. Bastava possuir uma boa navalha para cortar um tronco não muito grosso de uma árvore de sabugueiro. O pedaço de tronco a cortar deveria ser rectilíneo e com um tamanho aproximado de dois palmos de criança. Depois de cortado e devidamente alisado nas pontas, com uma verga ou com um vime empurrava-se o miolo do respectivo pedaço de tronco de sabugueiro, de modo a que este saísse totalmente e o sabugueiro ficasse furado duma ponta a outra, como se fosse um túnel, formando uma espécie de tubo. De seguida cortava-se um garrancho de incenso, de preferência com uma das metades mais grossa do que a outra. Uma parte do incenso, um pouco mais pequena do que o sabugueiro, deveria ser cortada, “falquejada” e raspada com um pedaço de vidro, de maneira a formar um cilindro que penetrando no tubo do sabugueiro se ajustasse ao mesmo sem grandes folgas, de tal modo que a parte mais grossa empeçasse e não entrasse no tubo, formando uma espécie de êmbolo. Com a navalha cortavam-se dúzias e dúzias de pedaços de raízes de cana roca, à semelhança de pequenas rolhas ou juntavam-se as bagas de zimbro ou sanguinho, destinadas a tapar ambas as extremidades do tubo de sabugueiro. Uma vez bem metidas no mesmo deveriam ser bem apertadas, aparando-se toda a parte da rolha que não entrasse, de modo a ficar rasa nas extremidades do tubo. De seguida com o pau de incenso ia-se empurrando uma das rolhas que, aos poucos, ia entrando no tubo, comprimindo o ar, até empurrar a rolha da outra extremidade, atirando-a para bem longe e provocando um enorme estalido. A rolha empurrada ficava a ocupar a da parte da frente que havia sido atirada e colocava-se nova rolha na parte traseira, repetindo-se a operação cada vez que se pretendesse dar um novo tiro.

Uma arma de sabugueiro, quando bem-feita, atirava a bala para uma distância bastante considerável, provocava um ruidoso estalido e, se acertasse na corpo de alguém, doía a valer. Ai se doía!

As meninas, por sua vez, porque pouco afeitas a estas actividades bélicas, entretinham-se a fazer as cadeirinhas de junco. O junco era uma planta herbácea que crescia abundantemente nas Flores, quer nos terrenos alagadiços, vulgarmente designados por lagoas, quer nas margens das ribeiras e com mais abundância ainda nas zonas mais altas e rochosas da ilha, sobretudo nos matos, onde inclusivamente havia um lugar que fazia jus a este nome – o Rochão do Junco.

De tão abundante que era o junco, nem era aproveitado na totalidade, sobretudo porque o seu uso se destinava exclusivamente para secar os currais dos porcos, substituindo a cana roca e os milheiros ou para cama do gado nos palheiros, substituindo os fetos e o restolho do trevo e da erva da casta. Por isso mesmo, o junco crescia e multiplicava-se de forma extraordinária, acabando por apodrecer no mesmo sítio onde nascia e crescia, para voltar a nascer e crescer de novo. Estava pois sempre à mão, o junco. Além disso o seu caule cilíndrico possuía uma mobilidade e uma flexibilidade que convidavam à criatividade. As meninas, nas suas brincadeiras, corriam a apanhar os caules do junco, verdinhos, aveludados e maleáveis e a fazer com ele as interessantíssimas “cadeirinhas de junco”, para brincar, por vezes colocando-as nas casitas de papelão das bonecas de trapos com cabeça de loiça ou de casca de milho que elas próprias ou as mães construíam. Escolhiam os caules melhores e os mais rechonchudos e selecionavam o maior, com o qual se armava as costas da cadeira, colocando-o em semicírculo sobre os dedos indicador e anelar, do lado das costas da mão, dando-lhe, de seguida, alguma folga. Depois e do lado interior da mão colocavam horizontalmente um outro caule, dobrando-se sobre este as duas pontas do primeiro que ficavam presas entre os dedos. De seguida colocavam um outro caule, também horizontalmente e paralelo ao anterior, dobrando da mesma forma as suas extremidades e procediam assim até obter seis ou mais caules horizontais sucessivamente dobrados nas pontas e que formavam o assento da cadeira. Retirada toda esta estrutura da mão, prendiam e amarravam em quatro as extremidades dobradas dos caules, que depois de cortadas do mesmo tamanho formavam os quatro pés da cadeira. Obtinham assim um produto final de belo efeito, ou seja, um brinquedo de rara singularidade, de notável beleza e de considerável fascínio.


Carlos Fagundes

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