sexta-feira, 7 de novembro de 2014

«Brumas e Escarpas» #81

A casa de todos os silêncios

Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, encastoada a meio da colina, para mim era como que o centro do Mundo. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas e envergonhadas, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu depositava todas as minhas, aparentemente, idolatradas fantasias, os meus inocentes anseios de um mundo diferente, embora indefinido.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada a meio da colina, abriam-se todos os dias, destemidas e acolhedoras, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes. Rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.

A casa, branca e altiva, plantada a meio da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas, o pôr-do-sol e o rumo dos navios no horizonte, estavam sempre abertas. Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias inconfundíveis, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.

A casa branca e altiva, encastoada a meio da colina era da minha avó e estava sempre repleta de tios e tias, de primos e primas e de muita outra gente. À noite, com a claridade duma luz trémula mas acolhedora, enchia-se de cardas, de fusos, de novelos de lã e até de rezas e orações, em serões fascinantes, acompanhados de estórias maravilhosas. De manhã ouvia-se o crepitar do lume na grelha, o despejar da água na chaleira e o roncar roufenho do moinho de moer o café, a chicória e a cevada. De fora chegavam o ladrar dos cães, o cantar dos galos, o mugir das vacas na procura das crias e até o sonido acutilante dos grilos em cio.

E a casa como que crescia e se empinava contra os ventos do norte e as tempestades de oeste. Acariciada pelas brisas matinais, purificada pelo sabor da maresia, a casa como que navegava e florescia embalada com o deslumbrante brilho das estrelas, adocicada com o permanente cantarolar dos tentilhões e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.

E depois?... Depois vieram anos desertos, tempos de desmoronamento, momentos de destruição, fugas para a América e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada a meio da colina. A claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fossem os destroços de um navio naufragado.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada a meio da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.

E agora quando a revejo, quiçá pela última vez, todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e, desastradamente, desertas, respiram o silêncio. Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-na definitivamente, transformando os encontros e as vozes de outrora em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado. O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho. Até o velho “Ansónia”, trazido da América por meu bisavô, arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite, está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tique-taque contínuo, aflitivo mas gracioso.

O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.

Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.

Enfim, as vozes, os gritos, as rezas e até os ecos das discussões calaram-se para sempre porque a casa plantada a meio da colina, com vista sobre o mar, tornou-se deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se num enigmático e terrível ermitério.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

Sem comentários: