sábado, 18 de abril de 2015

«Brumas e Escarpas» #87

A eira da Cuada

A Eira da Cuada era um dos mais interessantes e míticos lugares da Fajã Grande. Situava-se num planalto, junto ao mar, a sul da freguesia e, consequentemente, muito próximo da Fajãzinha. O acesso a este lugar, para quem morava na Fajã, fazia-se pelo antigo Caminho da Missa que tinha o seu início no cimo da Assomada, à direita de quem a subia. Os habitantes da Cuada, no entanto, podiam deslocar-se para os campos e propriedades que ali possuíam através duma estreita e sinuosa canada que ligava os dois lugares, conhecida pela Canada da Eira da Cuada. Quem vinha dos lados da Fajãzinha chegava à Eira da Cuada atravessando a Ribeira Grande e subindo a ladeira do Biscoito, que fazia fronteira a sul com aquele interessante lugar. Os restantes confrontos eram a Cuada a leste, o Caminho da Missa a norte e o Oceano Atlântico a oeste. O nome advinha-lhe, provavelmente, de em tempos idos ter existido ali uma eira onde os habitantes da Cuada debulhavam o seu trigo. Trata-se, no entanto, de uma mera hipótese, uma vez que na década de cinquenta do século passado já não existiam vestígios ou memórias de qualquer eira ali existente noutros tempos. Assim, o epíteto poder-lhe-á ter sido atribuído, simplesmente, pelo facto daquele lugar se situar sobre um amplo planalto, de tal maneira liso e circular, formando um grande eirado e que fazia lembrar uma espécie de eira gigante.

Mas o que mais caracterizava aquele lugar era o facto de apenas a parte leste do mesmo ser ocupada por terras de lavradio pertencentes, na maioria, aos habitantes da Cuada, enquanto a oeste e sobre uma enorme ravina lançada sobre o mar, existir uma espécie de largo, um espaço público ou de ninguém, relvado e povoado de variadíssimos calhaus. Entre estes existia um muito especial, designado por Pedra da Missa ou Calhau de Nossa Senhora. Acerca deste calhau, contava-se antigamente, quando a Fajã Grande ainda não era paróquia e, consequentemente, não tinha igreja nem pároco, que os seus habitantes deslocavam-se à Fajãzinha todos os domingos para assistirem à missa na igreja paroquial. Acontecia porém que a Ribeira Grande, que separa as duas localidades, como é bastante larga e com um caudal muito volumoso, não possuía ponte mas sim umas pequenas passadeiras ou alpondras que em dias de muita chuva ficavam submersas na água, o que, juntamente com a força do caudal, umas vezes dificultava e outras impedia por completo a sua travessia. Quando tal acontecia os fiéis, impossibilitados de atravessar a ribeira, ficavam do lado de cá, no alto da Eira da Cuada, olhando para a igreja da Fajãzinha, que dali de se avistava, rezando e cantando durante a celebração da missa e apenas se dispersando e voltando às suas casas quando viam as pessoas saírem da igreja, sinal de que a missa terminara. Além disso faziam-se sempre acompanhar duma pequenina imagem de Nossa Senhora que colocavam em cima daquela pedra, durante a missa, ao redor da qual ajoelhavam e rezavam. Em paga da sua grande devoção, a imagem de Nossa Senhora, que fora ali colocada tantas e tantas vezes pelos crentes, deixou, para sempre, bem gravadas naquele calhau as marcas dos seus pés. Na verdade na pedra existiam duas pequenas cavidades na parte superior, semelhantes às marcas de dois minúsculos pés. Também se contava que no regresso os fiéis vinham carregados com pedras destinadas à construção de uma ermida, o que de facto aconteceu antes da construção da atual igreja, na década de cinquenta do século XIX. Por esta razão o caminho que liga o povoado à Eira da Cuada se chama Caminho da Missa.

Acrescente-se que sendo o Caminho da Missa, outrora, via obrigatória para quem se quisesse deslocar da Fajã Grande à Fajãzinha ou a qualquer outra localidade da ilha, exceto a Ponta Delgada e aos Cedros, este lugar era muito movimentado, sobretudo em dias de vapor, ou seja nos dias em que o velhinho Carvalho Araújo demandava a ilha das Flores. Por ali passavam, nesses dias, dezenas de pessoas, não apenas os que haviam de embarcar ou desembarcar, mas também os familiares que os acompanhavam, a pé, até aos Terreiros ou até a Santa Cruz ou às Lajes, assim como os comerciantes e os carros de bois que acarretavam as mercadorias que a Fajã produzia, nomeadamente manteiga, também os animais que embarcavam, mas sobretudo os que traziam ou acarretavam os produtos importados e que o navio transportava, nomeadamente, farinha, açúcar, café, sabão, petróleo e algumas bebidas.

Era também à Eira da Cuada que muitas pessoas se deslocavam, nesses dias em que o Carvalho Araújo chegava, para irem esperar os parentes e familiares que chegavam à ilha, de modo muito especial os americanos. Eram sobretudo as crianças e os velhos, porquanto os jovens e os adultos, mais afeitos e expeditos, seguiam até aos Terreiros onde os carros de praça vindos de Santa Cruz terminavam o seu percurso.

Do alto da Eira da Cuada desfrutava-se de uma maravilhosa vista sobre o mar, a Fajãzinha, a fajã que a ladeava, a rocha cheia de verde e de cascatas, as rochas da Figueira e dos Bredos, onde, em meados da década de 1950, começava a desenhar-se a nova estrada que ligaria os Terreiros à Fajã Grande. Deslumbrante, este lugar!


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

1 comentário:

Anónimo disse...

Linda e verdadeira esta história dos nossos antepassados. Assina o sempre atento para o melhor nas Lajes.