Ilha das Flores à mercê do tempo (III)
O que aparece agora, ao fundo, é mesmo a ilha das Flores - e o recorte dos seus pontos mais altos apresenta-se muito mais nítido do que nos dias anteriores. Será hoje, finalmente, que vamos pôr a vista em cima das lagoas?
Na lagoa da Lomba, pelo menos. Apesar das nuvens, está completamente visível. Tem uma forma mais ou menos circular e está enquadrada por criptomérias e, claro, por belíssimas sebes de hortênsias. De momento não está cá mais ninguém. Ouvem-se os pássaros e o vento e agora o Sol espreita por momentos, bate-lhe e torna as suas águas mais claras.
Embalados pela sorte vamos em busca das lagoas que nos faltam no currículo. Correm as nuvens e corremos nós, a cruzar os dedos. Nada na Comprida, nada na Negra. Mudamos de lugar, sempre atrás dos prejuízos desta neblina que nos troca as voltas. Estamos há minutos à espera de poder ver uma nesga da lagoa Funda. Primeiro perdemo-la, por dez segundos. Pacientes, esperamos, que aqui aprendemos a esperar. E entretanto ela surge, uns metros apenas, que se escondem logo às mãos destas nuvens com vontade própria.
Estamos dentro de um jogo de paciência, que agora nos oferece um centímetro da lagoa Negra e um centímetro da Comprida. Andamos para trás e para a frente, ao sabor dos blocos de nevoeiro. De vez em quando, um ameaço de Sol doura os campos molhados e renasce a nossa esperança. Marco Melo, porém, conhece melhor do que ninguém estas "terras metidas nos vulcões" e chama-nos à realidade: por mais que esperemos hoje, não as veremos na plenitude que merecem. Resignemo-nos, então, a voltar para o Continente com esta lacuna por preencher.
A não ser que... A não ser que ainda não sejam 8 horas da manhã do último dia e que o telemóvel nos arranque do mundo dos sonhos - para nos levar para o mundo dos sonhos. "É o Marco. Está um dia magnífico. Se quiserem fazer um passeio antes do voo, é pegar ou largar."
Pegámos, como é óbvio. Fomos subindo em direcção às lagoas debaixo de uma luz como nunca tínhamos visto a esta altitude. Já não era toldada, como nos outros dias, mas muito mais límpida - talvez a "poeira dourada" de que fala Raul Brandão. Ignoramos a entrada para a lagoa da Lomba, que ontem já tínhamos visto, e dirigimo-nos sem outras paragens para a lagoa Comprida. Uma súbita neblina ainda nos faz temer o pior, mas de repente fechamos os olhos e quando os abrimos lá está ela, completamente despida para nós.
O silêncio é enorme, deixamo-nos ficar num exercício de contemplação. Estamos a viver um momento quase solene, que interrompemos para avançar poucos metros a fim de conhecermos a vizinha lagoa Negra. É uma circunferência quase perfeita, rodeada de espécies endémicas por todos os lados: cedro do mato, louro, queiró. Tem mais de 100 metros de profundidade que, no entanto, não assustam devido à magia do cenário. Mais mágico do que isto só mesmo o que vemos em seguida, no varandim de um segundo miradouro. As duas lagoas, a Comprida e a Negra, praticamente lado a lado - ou, se preferirmos, de costas voltadas, numa sintonia descasada quase dramática. O Sol incide sobre a lagoa Negra e deixa-nos ver-lhe melhor a tonalidade das águas. O momento é solene, já tínhamos dito - este canto da ilha das Flores é belíssimo, acrescentamos agora, sem receio de exageros.
Entramos no jipe com a alma cheia. E quando, em simultâneo, alcançamos com o olhar as lagoas Funda e Rasa, damos muito mais valor ao que está a acontecer. Era justificada a angústia dos últimos dias: não podíamos deixar a ilha das Flores sem levarmos connosco estas imagens de assombro e rendição. A lagoa Funda é de uma beleza extrema, quase trágica de tão verde. Por um rasgão nas nuvens, vê-se o mar lá ao fundo. Mas o impacto é muito maior, realmente, quando estão ambas no mesmo plano de visão.
Estamos absolutamente esmagados. Isto é imenso e misterioso, pena não termos mais tempo para fruir do instante. A contragosto, voltamos as costas a este reino encantado e vamos descer. De bónus, ainda levamos a visão longínqua da lagoa Branca. E finalmente o céu abre-se para nos mostrar a imponência da Rocha dos Bordões. Talvez hoje pudéssemos subir ao Pico da Sé e fazer a caminhada até ao Poço da Alagoinha.
A ilha, percebemos agora, é uma mulher prudente: não se mostra à primeira, gosta que lhe façam a corte sem pressas. Nós tivemos alguma pressa, reconhecemos. Mas havemos de voltar, ilha das Flores.
Notícia: suplemento «Fugas» do jornal «Público».
Saudações florentinas!!
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