quinta-feira, 4 de setembro de 2008

«Miscelânea da Saudade» #1 (3/3)

Há uma [outra] coisa porém; oiço dizer que quem sai doutro lugar para experimentar viver na ilha das Flores, adapta-se e ama a terra de tal forma que fica a ser filho adoptivo dela. Não me admiro disso, porque há 60 anos saí de lá, e passo metade da minha vida a viver no Canadá, e a outra metade na ilha onde nasci.
Explico já: o dia a dia é vivido nestas terras da diáspora, mas o silêncio da noite está reservado para sonhar, meditar, e contemplar o meu torrão natal, terra onde nasci, a “minha” ilha das Flores.

Hoje, revivo a memória dum passado tão distante, passado esse que nada diz aos mais novos, e muito menos aos que não são filhos da terra mas que nela vivem.

Durante a última Guerra Mundial, 1939/1944-45, as Flores sofreram também, mas num ponto talvez menos do que as restantes ilhas. A terra produzia para o seu povo. A gasolina não fazia falta; não havia automóveis na ilha das Flores, com excepção dum “chega-chega” muito velho e tocado a petróleo que havia em Santa Cruz, que, quando trabalhava, as fábricas da baleia não faziam mais fumo. Afinal o que o povo das Flores, e do Corvo, carecia e ainda hoje carece, mas menos, era o contacto com as outras ilhas e o Continente português, ou até com o resto do mundo.

Tínhamos o sabão caseiro. A luz nas casas provinha de lamparinas de azeite de baleia, a ilha produzia milho, trigo, batatas, inhames, feijão, carne, leite, manteiga e fruta com abundância. O peixe era [tão] abundante que até São Pedro daria metade do dízimo para pescar no mar das Flores.

Lá de vez em quando, chegava um saco de roupa da América, depois de muito usada e remendada, durava anos. As medicinas eram poucas. Na parte de urgência para admissão hospitalar, nem pensar nisso... Imaginem uma doença grave nestas duas ilhas. Quando os velhos 'vapores' Carvalho Araújo, ou Lima, chegavam às Flores, se chegasse, já o doente estava na "terra das malvas".

Agora pergunto a mim mesmo: como é possível um florentino, 'eu', sentir saudade da ilha das Flores, quando de manhã acordava com as narinas defumadas pela lamparina do azeite de baleia? Isto, para não falar noutras carências, porque os meus bons pais eram muito pobres.

Vendo e lendo as desgraças que há por este mundo fora, já não me considero o tal rapaz pobre das Flores, mas sim: rico com o pouco que tínhamos. Só sentimos falta da riqueza quando a perdemos. Se nunca a tivemos, e não a conhecemos, também não nos faz falta.

Denis Correia Almeida
Hamilton, Ontário, Canadá

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro denis, respeito o seu saudosismo, é um mal que afecta todos os seres humanos, menos os mentirosos, pos esses tem a nata capacidade de se enganar a si próprios, porém ao ler o seu artigo tenho de fazer um pequeno reparo.
você fala de a ilha ter sentido pouco os dissabores de um conflito mundial, não o vivi, mas tomo a sua palavra por verdade, a miséria era tanto (segundo me contam), que realmente foi só um tempo de mais um pouco dela, por isso o meu reparo prende-se com o facto de falar numa ilha auto-suficente, onde a terra produzia tudo o que o povo precisava, dessa parte tenho sérias dúvidas, que me relatem as pessoas mais idosas que conheço, ( fazendo você referencia ás suas modestas origens, devia bem sabe-lo) os mais pobres faziam "maratonas" de trabalho para ganhar um queijinho fresco ou meia "razoura" de milho, tornando em farinha e logo a seguir em pão de milho (porque a farinha de trigo era só para os ricos), para alimentar as famintas bocas das grandes famílias que eram fruto da necessidade de muitas mãos para trazer para casa o sustento. Os ricos e abastados não passavam de meia dúzia de "famílias" que segundo dizem viviam de "chupar" até a última gota o suor dos desgraçados. Famílias essas que hoje aqui na ilha, acabaram por morrer miserávelmente afogadas na sua própria crueldade e avarez.
Nomes não menciono porque muitos já nem estão entre nós, mas todos nós sabemos quem são eles. felizmente hoje os "Vampiros" são de outra estirpe, não que sejam menos "chupadores" de sangue e suor, mas porque o sistema dotou-os de uma gota vergonha que os impedem de regressar a esses tempos de sujeição.
Mas cuidem-se todos porque vontade não lhes falta. continue a escrever da Diáspora caro conterrâneo é sempre bom ouvir o que o outro lado tem a dizer.

Anónimo disse...

Caro Conteraneo é sempre bem vindo os seus comentarios, e com a verdade daquele tempo em que diz acordar de manhã com o nariz cheio de fume. Eu já apanhei o petroleo nasci 19 anos mais tarde ou seja em 53 mas tambem cheguei acodar com nariz cheio de fume tinha-se de ter o cuidado de aparar o pavio do candieiro.quanto às terras sempre em minha casa tinha-mos o nosso milho a batata doce e branco feijão e aos meus 12 anos comecei quando sai da escola comecei a trabalhar e como diz o Senhor do comentario de cima os ricos chupavam o suor até das crianças, cheguei andar todo o dia á frente dos bois a lavrar terra com os pés descalços e as vezes os bois saiam do rego e teria que ouvir o sermão do patrão e calar senão levava com aguilhada pelas costa abaixo e não havia horários era de sol a sol e então á noite vinha para casa todo contente com cinco escudos na algibeira e com os meus pés a verter de sangue de andar todo o dia naquela terra dura e seca. um Florentino ausente.