segunda-feira, 5 de maio de 2014

«Brumas e Escarpas» #74

O diálogo dos velhinhos

Fajã Grande, ilha das Flores – anos cinquenta. Sentados à Praça, na soleira da porta da casa velha do Laureano Cardoso (a casa que Pedro da Silveira descreve num dos seus poemas e que terá pertencido ao seu avô), dois velhinhos conversam em puro “dialecto fajãgrandês”:

- Wei, home! E antão? Toca a descansá, pr’aí! Tás bunzinhe c’ma pareces?
- Ó home, iste tá mun somenes. Ache qu’apanhei frie, tou sim fastie e cua caganeira dos diabes. Ainda pur cima doim-m’as aduelas qu’é ua coisa feia. Nim sequé me posse agaichar. Tou a modes c’ma tole, nem m’apetece pegá na navalha e falquejá…
- Deixa lá, home, nã crames tante. Antes isso cum soque nun olhe! Mas olha qu’ei fique ben abalade cum isse. Mas ei nã te posse fazê nada. Há uns tempes atrás, tamen andei bem mal amanhade e coa casa cheia de monces piquenes pa m’apoquentar.
- Pois é, home. Na noss’idade é contas e bordões. Istames quase entre a cruz e caldeirinha. Lá vai o tempe qu’agente nan parava in ramo verde. Ei ia ao mate num pé e vinha n’oitre.
- Ó home, fot’avantage! E ei tamen, quand’era nôve, nã tinha lanzeira nenhua. Trabalhava cm’um danade e nunca ranzelei. Sasquei muites dedes, fiz muitas tupadas, até cum dedes degolades e cui pés que pareciim pães de milhe, calcorriei muites caminhes, sempre descalce, trabalhei que me fartei. Às vezes, até parecia que deitava as tripas pela boca fora.
- Ei tamen nã parava in rame verde, home e nunca tive murrinha nenhua. Mas a minha mulhé ten m’ajudade muite. In casa é ua mulhé perfeita de mãos e ben escoimada. Nas terras é u que toda a gente vê: danada p’ra trabalhar. Trabalha c’ua gadanha ou cum ansinhe milhó que muites homes.
- Tens bastanta sorte, home dos diabes. Ei é que tou mum semenes e, ainda pur cima, sozinhe neste munde. Nin sequé um prate de mangão sei fazê, nim muite menes cuzê bole do tijole.
- É triste home, é triste. Mas o milhó é a gente falá in coisas ben más alegres.
- Mixeriques, qués tu dzê?
- Olha, sabes que virim a mulhé do Batoco caldeada cu Sabastião, nos apsteres lá de casa. Dizim qu’era un bonite fandine. Tavim ui dois in coire...
- Virge Maria! Louvade e louvede! Mas tamen o Sabastião... fot’avantage! Aquele sanabagana mete-se é cus fraques. Precisava era qu’álguém lh’aquecesse a pélia. Aqui atrasade, o sanabicha andava a dar arrefiadelas à piquena do Desalmade. E um badameque daqueles, no fim, ainda se põe a arreganhar ei ventas.
- Mas a du Batoco tamen é ua boa bisca e ele, ainda por cima, coitade, já mal s’aguent’in pé, já mal mech’as aivecas, já nã pode cun gate pindurade p’lo rabe. E o pior é que nã s’incherga. Aquilh’é qu’é ua alminha de Deus. E ele cu Sabastião são amigues c’ma porcos.
- Ó home, deixa lá! Isse tamen nã são contas do nosse rosaire. Falemes mas é dei nossas vacas. Olha, a minha Lavrada, benzá Deus obra, dá ua grandeza de leite mas o oitre dia, na relva das Queimadas saltou a parede e até m’arrebantou o estrape da campainha. Agora tenhe que lhe pô ua galocha, mas c’mei nan tenhe nenhua, vou mas é acabramá-la. Ela há-de s’amanhá assim.
- Fazes ben, home, fazes ben. Ei minhas tão mas é no oitone, amarradas à estaca. Dão bem menes consumições, mas ainda onte, chuvia c’ma Deus a da dava, ua delas, puxa que puxa, a sanababicha, lá m’arrebantou o suevo! Amarrei-a cum’ua corda e c’ma ande a corrê o millhe du Areal, tirei-a do tailhe e deitei-lh’o desbaste.
- Já vedei a minha relva da Pedra d’Agua! Pó mês que ven a minha vai dá bezerre.
- Poisei minhas, ua tá dando e a outra vou ingordá-la pá mandá ver os sinhôs de bengala. Já sou mum velhe pa tratá de duas vacas sozinhe.
- Ó home, mas isso é bunzissime! Menes trabalhe e mais móni in casa.
- Agora cá, home. Bota ben sintide nu qu’ei digue. Olha q’ei nunca fui muite agarrad’ao dinheire, e agora, imbarcand’a vaca, nan vou guardá u dinheire nos caninhos, vou mas é cumprá ua barra, ua ministra e ua clauseta nova pá casa de fora e metê áugua in casa.
- Fazes ben, home, fazes ben. Ei é que n’na posse. Só se fosse cum conchas de lapas.
- Ó home, já chega de conversa. Ala botes, mas é pra casa, que já é ben tarde Tou danade p’ra ciá e são horas d’inchê o pandulhe e tim que me deitá cede. Goste de me deitá c’u as galinhas. Até amanhã, se Deus quisé.
- Nã, mas pra casa é quéi nã vou ainda. Vou fica pur aqui mais um bom padaço. Mas ei nã queria ficá a vê navies. Pode ser que chegue algum, cum mais alcuvitices. Até amanhã, se Deus quisé, home.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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