Labuta diária
Na Fajã Grande, comunidade cuja economia dependia fundamentalmente da agricultura e da criação de gado, até à década de 1950 o calendário era profundamente condicionado e estabelecido pelas exigências de uma e outra destas atividades. Assim, o ano como que começava não no dia 1 de Janeiro mas em Outubro, a partir da altura em que se iniciava o novo ciclo agrícola e em que as terras não tinham nada. Era por isso que quem fizesse uma terra de meias, ou a tivesse de renda, se pretendesse terminar o contrato, entrega-la ao dono ou iniciar um novo período de arrendamento ou contrato de meias, devia fazê-lo nos fins de Outubro.
Assim, podia dizer-se que o ano agrícola começava quando se iniciava um novo período de produção, ou seja nos princípios de Novembro, altura em que a agricultura como que estava na sua fase de hibernação. Por estas alturas, pouco mais se fazia do que tratar do gado, preparar a matança do porco e do Natal. Mas iniciavam-se também as novas atividades agrícolas tendo em conta não apenas os ciclos lunares e as marés, mas também uma série de crenças, mitos, tradições e de costumes ancestrais e ainda o clima, o tempo, o vento, o sol, a localização das terras, a sua proximidade do mar, a natureza do terreno, etc, etc. Tudo isto obviamente condicionava e influenciava o ano agrícola.
Em Dezembro e Janeiro o mau tempo que se fazia sentir na freguesia cerceava fortemente as atividades agrícolas. Mas em Janeiro já se preparavam algumas terras, sobretudo as que ficavam mais próximas do mar, limpando, estrumando, transformando-a de modo ao terreno ficar limpo, fofo e sem torrões. Dava-se continuidade ao semear das favas, iniciado em Dezembro pela Senhora da Conceição, plantavam-se couves e cebolinho. Em Fevereiro, com o tempo a melhorar já se cavavam ou lavravam as terras que não tinham forrageiras ou que estavam livres e que recebiam o estrume retirado dos palheiros ou o sargaço armazenado nos lagos, no Rolo da Ribeira das Casas. Nalgumas terras semeavam-se os feijões, as caseiras e os tomateiros, plantavam-se couves. Fazia-se o canteiro para a batata-doce e, no fim do mês, já se plantava alguma rama se a houvesse.
Em Março continuavam-se os trabalhos iniciados em Fevereiro, nomeadamente os respeitantes ao acarretar para os campos o estrume e o sargaço, lavrava-se e cavava-se, preparando-se os terrenos para as sementeiras e plantações para o presente mês e para o seguinte. Já se semeava algum milho nas terras próximas do mar, como Areal, Furnas, Porto, Cambada, Estaleiro, Rego do Burro e outras. Procedia-se, se o tempo o permitisse, às primeiras sachas de algumas culturas já em desenvolvimento. A plantação da bata-doce tinha o seu apogeu nesse mês. Em Abril já se sachava e mondava o milho, enquanto se semeava nas terras mais distantes do mar e que haviam sido trilhadas pelo gado amarrado à estaca, e que antes deveriam ser abertas com o arado de ferro. Estas terras, geralmente não necessitavam de estrume. Semeavam-se batatas. Em Maio dava-se continuidade a tudo isto e já havia muito milho para sachar e abarbar. O mesmo acontecia em Junho, altura em que o milho já deveria estar todo sachado, mondado, desbastado e abarbado. Apanhavam as primeiras batatas que também haviam sido sachadas, mondadas e calçadas. Era preciso também sachar os inhames, apanhar alguns e plantar outros novos.
Em Julho e Agosto, enquanto o milho crescia limpavam-se as terras de mato, ceifando a cana roca e os fetos, assim como as relvas que tinham feitos. Estes eram postos a secar e depois amarrados às mancheias ou pavias, sendo guardados nas casas velhas para servirem de cama para o gado no Inverno. Muito milho ainda era sachado no início de Julho. Setembro era altura de quebrar a espiga ao milho, de o desfolhar sendo as folhas também amarradas em mancheias com folhas de espadana e presas nos milheiros para que secassem. Serviriam de comida para o gado no Inverno. Iniciava-se a apanha do milho nas terras perto do mar. Em Outubro era a apanha do milho, encambulhá-lo e guardá-lo nos estaleiros, arrancar os milheiros e limpar as terras que deviam ser entregues no fim do mês. Era o fim de um ciclo, o ciclo do milho que na verdade dominava todo ou quase todo o ano agrícola. Na verdade era o milho que estava na base da economia da Fajã Grande, nos anos 1950, baseada numa agricultura de subsistência, na qual o cultivo daquele cereal se revelava muito importante, dado que dele dependia a sobrevivência da população.
Toda esta labuta diária, a que se juntavam muitas outras atividades como o cortar lenha, ceifar erva, apanhar incensos, tratar do gado, tirar o leite, limpar palheiros e currais, ir muitas vezes ao leite ao mato, constituía um desmesurado trabalho, um cansativo esforço que no entanto era extremamente compensado com tudo aquilo que as terras davam, nomeadamente o milho, que constituía grande parte do sustento anual de cada família. O milho era pois rei e senhor, servindo inclusivamente como moeda e forma de pagamento. Um dia de trabalho era pago com um alqueire de milho.
Tudo no milho era aproveitado. Em primeiro lugar o produto final, ou seja, o que de mais importante se extraía do milho: a farinha, com a qual se fazia o pão e o bolo, elementos básicos no cardápio alimentar de então. Mas não se ficavam por aqui os lucros e benefícios de tal produção. As maçarocas, quando o milho estava verde e ainda vertiam leite eram cozidas juntamente com as batatas brancas ou assadas no espeto e constituíam um bom e saboroso alimento. Outras vezes os grãos eram torrados, servindo não só para se comer mas para se juntar e moer com o café. As folhas tinham um peso substancial na alimentação do gado no Inverno e as espigas, ainda verdes, também alimentavam os bovinos no Verão; a parte interior da casca das maçarocas, depois de desfiada e alisada, era utilizada para encher os colchões e travesseiros e com a restante também se alimentavam os bovinos; uma parte dos milheiros utilizava-se para fazer o lume em que se cozinhava a comida do porco, enquanto outros eram picados em pequenos pedaços e utilizados para secar o curral do suíno das húmidas imundícies em que era profícuo, graças ao seu desassossegado e hediondo reboliço; os sabugos eram utilizados para acender o lume, para as crianças brincarem e até para limpeza e higiene do rabiosque; uma boa parte das maçarocas, sobretudo aquelas cujos grãos eram mais raquíticos bem como as excedentes da produção da farinha, eram utilizados para alimento das galinhas, do porco e das vacas à engorda e até com os fios da cabeleira que saíam da ponta da maçaroca, depois de secos, se fazia chá, muito recomendado nos achaques dos rins e nas infeções urinárias. Além disso e depois de peneirada, a farinha deixava no fundo da peneira um farelo que era utilizado em parte para engrossar as águas das lavagens do porco e também para alimento das galinhas, fazendo-se com ele uma espécie de bola a que se juntavam couves e cascas de batatas, geralmente cozidas e picadas. Finalmente, com a farinha do milho ainda não seco faziam-se as tradicionais papas grossas.
Daí que toda esta riqueza resultante do cultivo do milho justificasse, durante o ano, um trabalho excessivo e cuidadoso e envolvesse toda a população no seu cultivo, a que dedicava grandes cuidados e gigantescos esforços. O milho era, na realidade, a causa e a razão de tudo, até determinando e delineando o calendário da Fajã Grande, obrigando os seus habitantes a uma árdua e persistente labuta diária.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».