São Cornélio
Todos os anos, no mês de Setembro e após as prolongadas e danosas secas de Verão que tanto prejudicavam os campos e as sementeiras, realizavam-se as “Rogações”, ou seja procissões que percorriam algumas das ruas, durante as quais, recorrendo à invocação e intersecção dos santos, se implorava a benevolência e a proteção divinas, a fim de que, pura e simplesmente, chovesse. Os produtos agrícolas, semeados e plantados nos campos, de tão raquíticos e definhados que estavam, haviam de tornar-se viçosos verdejantes e, consequentemente, mais produtivos.
Saídas da igreja, estas procissões seguiam, todos os anos, os mesmos trajectos e cumpriam, com rigor quase milimétrico, os seus percursos. Durante a caminhada cantava-se a Ladainha de todos os Santos, uma prece da Igreja Católica dirigida a Deus, mas com pedidos de intercessão à Virgem Maria, aos Anjos e aos Santos mais importantes da Cristandade. Assim e durante a recitação ou canto da Ladainha eram invocados, para além de Nossa Senhora, os Anjos, os Patriarcas, os Profetas e alguns dos Santos que constam no Martirológio da Igreja, a saber: os Apóstolos e Discípulos de Jesus, os Mártires, os Bispos, os Doutores da Igreja, etc. Após a invocação dos santos, a Ladainha terminava com uma série de súplicas a Deus, a fim de que Ele, ouvindo as orações e preces dos fiéis, lhes concedesse os seus mais legítimos desejos e lhes satisfizesse as mais urgentes necessidades. As normas litúrgicas, no entanto, permitiam que, relativamente aos Santos, se pudessem acrescentar outros nomes, o mesmo acontecendo no que às invocações dizia respeito.
Era isso que fazia o pároco, até por que, sendo o giro da procissão bastante longo, a ladainha tal com constava no “Liber Usualis” não chegava para meia missa. Ora entre os nomes que o prebendado, todos os anos, acrescentava aos constantes do cânone, era o de São Cornélio, papa e mártir que governou a Igreja Católica no século III, num dos mais difíceis papados da História, embora, também, num dos mais curtos.
Cismou pois o pároco de que havia de acrescentar à lista dos “Omnes sancti mártires” e logo a seguir aos “Sancti Gervasi et Protasi” a invocação de São Cornélio, santo que, na opinião do clérigo, possuía um currículo muito superior ao de outros que constavam oficialmente na ladainha, dado que o Santo, para além de mártir, tinha sido teólogo, pregador, bispo e Papa. Ora acontecia que o pároco iniciava o canto da ladainha logo ao transpor do Guarda-Vento, com o “Kyrie eleison” e como a procissão seguia sempre com o mesmo ritmo, as invocações eram cantadas, todos os anos, junto às mesmas casas e sempre em frente às mesmas portas. A invocação de São Cornélio não fugia à regra. Aquilo era certo e certinho! Sempre que a procissão rondava a casa do Sabino, o pároco, em frente ao portão de entrada, parecendo até que elevava mais a voz, atirava para os ares: “Sancte Cornelius”, ao que o povo respondia em uníssono “Ora pro nobis”.
O Sabino ouviu um ano, dois anos e começou a não achar muita piada àquilo, até porque já há muito desconfiava que, pelos recantos da freguesia, corriam, à boca pequena, uns estranhos e pouco abonáveis mexericos relativamente à fidelidade da sua consorte. Uma vez ou duas... não se dava por nada. Agora todos os anos, em frente à sua porta, aquela invocação tão estranha e esquisita... aquele santo maldito cujo nome fazia lembrar... Ai dava que pensar, dava. Não seria que o pároco... Não se conteve o Sabino e, em vez de se calar, perante a chacota de todos, começou a indignar-se, a revoltar-se e a ameaçar tirar razões com o pároco. Mas pior do que isso, cuidando que assim, publicamente, defendia a sua honra e a dignidade da sua consorte, indignou-se em plena Praça, barafustou no Descansadouro e foi tirar razões com o pároco precisamente à hora da missa. Mas o prebendado retorquiu-lhe que nada podia fazer no sentido de alterar as normas litúrgicas impostas pelo Senhor Bispo ou sequer mudar o giro da procissão, contrariando as tradições e os costumes da paróquia. Além disso, fazendo-lhe uma síntese da vida e obra de São Cornélio, terminou, concluindo que “era uma das maiores figuras da Igreja Católica de todos os tempos, muito para além do actual Papa, Pio XII”.
De nada serviram as explicações do pároco, por que mesmo assim, não se calou o Sabino. Pelo contrário, mais barafustou, mais reclamou, mais se zangou, mais se indignou e mais atirou ao ar a displicência do pároco, aqui, acolá e além, que por fim já não era apenas o reverendo a cantar-lhe o nome do santo mártir, uma vez por ano, em frente ao seu portão. Era um chorrilho diário, um coro contínuo, uma revoada permanente de vozes de quantos lhe passavam em frente à casa ou que simplesmente com ele se cruzavam no caminho a cantar-lhe, em alto e bom som: “São Cornélio, ora pro nobis”.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».