domingo, 29 de janeiro de 2012

«Brumas e Escarpas» #35

O Dr Freitas Pimentel

Era eu ainda criança quando me desloquei pela primeira vez às Lajes, com o objectivo de ir buscar uma encomenda vinda da América. Fi-lo acompanhado e com uma dupla e incontida alegria. Por uma lado tinha a oportunidade de, pela primeira vez, ver, apreciar e percorrer as ruas de uma vila, que eu cuidava ser algo de muito grandioso e imponente e, por outro, animava-me a esperança de ter umas roupinhas novas e, eventualmente, um ou outro brinquedo já gasto e usado ou, simplesmente, uma esferográfica sem tinta, vinda na “saca” da América.

Nessa altura, ainda não havia estrada a ligar a Fajã Grande às Lajes, pelo que o trajecto, entre as duas localidades, era feito a pé por inteiro, atravessando a ilha de lés-a-lés, percorrendo veredas e atalhos, saltando grotas e ribeiras, subindo montes e rochas, descendo ladeiras e aclives e, por vezes, atravessando relvas e pastagens, à mistura com vacas e bezerros, a fim de encurtar distâncias e aliviar percursos. Eram quatro horas de viagem cansativa e fatigante, mas alegre e folgazona. A certa altura, cheio de sede e a arfar fadiga, bebi água em sítio onde muito provavelmente esta estaria infectada. Passados alguns dias fui acometido de febres muito altas, com a boca inchadíssima e num estado lastimável, pelo que permanecia de cama, inerte, sem poder comer o que quer que fosse. Um enorme sofrimento para mim e uma atribulada angústia para os que me rodeavam. Uma tragédia! Meu pai, aflito, nem sabia o que fazer. Na Fajã Grande não havia médico e levar-me a Santa Cruz era de todo impossível, devido à distância, à falta de transporte e ao meu estado de extrema fraqueza e acentuada debilidade.

Por feliz coincidência, nesses dias, o senhor Doutor Freitas Pimentel, à altura Governador Civil do distrito da Horta, realizou uma visita oficial à Fajã Grande, viajando num gasolina, desde as Lajes. Recebido apoteoticamente em cima do Cais, sua Excelência, acompanhado da sua comitiva, na qual já se incluíam as autoridades da ilha, dirigiu-se para a Casa do Espírito Santo de Cima, apinhada de gente, onde lhe foram dadas as boas vindas e feitos os discursos. Meu pai sabia que o senhor Governador Civil também era médico. Aguardou serenamente que todo este cerimonial se realizasse e, quando se apercebeu de que o mesmo se aproximava do fim, correu a casa, embrulhou-me num cobertor e trouxe-me ao colo até à Casa do Espírito Santo. Furando por entre a multidão, ludibriando os seguranças e resistindo à oposição de alguns membros da comitiva, aproximou-se do Dr Freitas Pimentel e solicitou-lhe que, por alma dos seus, me visse, me observasse e me receitasse algum remédio, ao mesmo tempo que me desembrulhava do cobertor.

O Dr Freitas Pimentel, apercebendo-se da gravidade do meu estado de saúde, de imediato, suspendeu a sua actividade de Governador Civil e solicitou ao seu secretário que lhe trouxesse uma pasta, donde retirou diversos instrumentos de diagnóstico médico. Observou-me, mediu-me a temperatura, auscultou-me e abriu-me a boca com uma espátula. De seguida, acalmou o meu progenitor, dizendo-lhe que eu tinha um gravíssimo ataque de piorreia mas que tudo se iria resolver. Receitou-me uma valente dose de penicilina, alguns comprimidos e um desinfectante oral, sugerindo que as injecções me fossem aplicadas o mais rapidamente possível.

Meu pai voltou a embrulhar-me no cobertor e perguntou quanto era a consulta. O Dr Freitas Pimentel, esboçou um leve sorriso, deu-lhe uma leve palmada nas costas e disse-lhe apenas:

- Vá depressa, homem. Vá depressa a Santa Cruz ou às Lajes comprar as injecções, que as não há aqui na Fajã.

Cumpriram-se com rigor as prescrições médicas e, alguns dias depois, eu estava são que nem um pero e meu pai aliviado.

Passaram-se mutos anos, sem que nunca mais visse o dr Freitas Pimental. Certo dia, porém, ao embarcar no aeroporto da Horta, dei com ele, só, abandonado, triste e melancólico, num canto da sala de espera. Cuidei que era a altura de lhe agradecer o que ele, há muitos anos, fizera por mim. Com alguma hesitação, aproximei-me, cumprimentei-o e apresentei-me, recordando o episódio de há muitos anos em que ele me havia curado. Que se lembrava muito bem das suas idas à Fajã Grande, mas não se lembrava de me ter tratado. Que procurara sempre ajudar a todos, mesmo quando lhe solicitavam cuidados médicos. Que nunca se recusara a tratar um doente e que sempre o fizera, sobretudo, naquelas localidades onde, na altura, não havia médico.

Agradeci-lhe mais uma vez e despedi-me. Para espanto meu, o antigo Governador Civil da Horta disse-me:

- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!


Carlos Fagundes

6 comentários:

Anónimo disse...

Olá Sr.Carlos
Mais um excelente artigo seu. E que Beleza que este contém! A generosidade é o mais belo sentimento que podemos ter.
Já agora,e sem revelar pormenores,digo-lhe que já uma vez na vida tive uma atitude semelhante e senti-me muito bem com a minha consciência. A resposta do meu interlocutor foi:"Você tem muita ternura.Conserve-a". Creio que o significado de ambas as respostas,não é muito diferente.
Bem haja.

Anónimo disse...

- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!

Isto só pode vir de um Homem Grande, com o coração do tamanho do mundo.

Anónimo disse...

Isso passou-se naqueles anos,hoje já não é bem assim,oxalá esteja enganado.

Anónimo disse...

Em falar do Doutor Freitas Pimentel eu conheciu em criança ainda nos anos 60 e à poucos anos a falar com um Faialense que vive na Terceira ele em saber que eu era das Flores falou-me do Doutor Freitas tinha cido muito bom para as crianças pobres do Faial e pelo o Natal destribuia pelas casas daqueles
mais pobres prendas e que tinha recebido muitas vezes.

Anónimo disse...

Em 1970, uns dias antes do Natal, recebi a visita da Ordenança do Governo Civil da Horta. Com ele um convite do Sr. Governador para no dia de Natal tomar o pequeno almoço com o ilustre casal Freitas Pimentel.

Eu estava sózinho na Horta porque a minha família havia emigrado para as Américas. Eu ficara atrás para cumprir o serviço militar que, na altura, era obrigatório.

Gestos como todos os que aqui foram apontados, entre muitos outros, demonstram o humanismo do Grande Homem que foi o ilustre filho daIlha das Flores, o Sr. Dr. António de Freitas Pimentel.

Com muito respeito pela sua memória,

Alexandre

Anónimo disse...

D.ro Freitas Pimentel foi um Homem da sua Ilha das Flores muito fez por ela. Ele como Governador a nossa Ilha foi das primeiras a ter agua encanada nas Freguesias foi no tempo dele que se fez muitas obras nas freguesias e a começar por se fazer escolas e muito mais. Foi um Homem que os florentinos não podem esquecer que ele sempre lutou para a sua Ilha por isso em certas coisas andamos à frente de outras Ilhas principalmente no que toca a agua encanada. Estive na Ilha do Pico em serviço no ano de 1979 na Madalena e ainda não havia agua encanada para as casas e no ano de 1980 andei na Ilha Terceira e foi neste ano que começou as Freguesias a ter agua encanada para as casas.