«Brumas e Escarpas» #35
O Dr Freitas Pimentel
Era eu ainda criança quando me desloquei pela primeira vez às Lajes, com o objectivo de ir buscar uma encomenda vinda da América. Fi-lo acompanhado e com uma dupla e incontida alegria. Por uma lado tinha a oportunidade de, pela primeira vez, ver, apreciar e percorrer as ruas de uma vila, que eu cuidava ser algo de muito grandioso e imponente e, por outro, animava-me a esperança de ter umas roupinhas novas e, eventualmente, um ou outro brinquedo já gasto e usado ou, simplesmente, uma esferográfica sem tinta, vinda na “saca” da América.
Nessa altura, ainda não havia estrada a ligar a Fajã Grande às Lajes, pelo que o trajecto, entre as duas localidades, era feito a pé por inteiro, atravessando a ilha de lés-a-lés, percorrendo veredas e atalhos, saltando grotas e ribeiras, subindo montes e rochas, descendo ladeiras e aclives e, por vezes, atravessando relvas e pastagens, à mistura com vacas e bezerros, a fim de encurtar distâncias e aliviar percursos. Eram quatro horas de viagem cansativa e fatigante, mas alegre e folgazona. A certa altura, cheio de sede e a arfar fadiga, bebi água em sítio onde muito provavelmente esta estaria infectada. Passados alguns dias fui acometido de febres muito altas, com a boca inchadíssima e num estado lastimável, pelo que permanecia de cama, inerte, sem poder comer o que quer que fosse. Um enorme sofrimento para mim e uma atribulada angústia para os que me rodeavam. Uma tragédia! Meu pai, aflito, nem sabia o que fazer. Na Fajã Grande não havia médico e levar-me a Santa Cruz era de todo impossível, devido à distância, à falta de transporte e ao meu estado de extrema fraqueza e acentuada debilidade.
Por feliz coincidência, nesses dias, o senhor Doutor Freitas Pimentel, à altura Governador Civil do distrito da Horta, realizou uma visita oficial à Fajã Grande, viajando num gasolina, desde as Lajes. Recebido apoteoticamente em cima do Cais, sua Excelência, acompanhado da sua comitiva, na qual já se incluíam as autoridades da ilha, dirigiu-se para a Casa do Espírito Santo de Cima, apinhada de gente, onde lhe foram dadas as boas vindas e feitos os discursos. Meu pai sabia que o senhor Governador Civil também era médico. Aguardou serenamente que todo este cerimonial se realizasse e, quando se apercebeu de que o mesmo se aproximava do fim, correu a casa, embrulhou-me num cobertor e trouxe-me ao colo até à Casa do Espírito Santo. Furando por entre a multidão, ludibriando os seguranças e resistindo à oposição de alguns membros da comitiva, aproximou-se do Dr Freitas Pimentel e solicitou-lhe que, por alma dos seus, me visse, me observasse e me receitasse algum remédio, ao mesmo tempo que me desembrulhava do cobertor.
O Dr Freitas Pimentel, apercebendo-se da gravidade do meu estado de saúde, de imediato, suspendeu a sua actividade de Governador Civil e solicitou ao seu secretário que lhe trouxesse uma pasta, donde retirou diversos instrumentos de diagnóstico médico. Observou-me, mediu-me a temperatura, auscultou-me e abriu-me a boca com uma espátula. De seguida, acalmou o meu progenitor, dizendo-lhe que eu tinha um gravíssimo ataque de piorreia mas que tudo se iria resolver. Receitou-me uma valente dose de penicilina, alguns comprimidos e um desinfectante oral, sugerindo que as injecções me fossem aplicadas o mais rapidamente possível.
Meu pai voltou a embrulhar-me no cobertor e perguntou quanto era a consulta. O Dr Freitas Pimentel, esboçou um leve sorriso, deu-lhe uma leve palmada nas costas e disse-lhe apenas:
- Vá depressa, homem. Vá depressa a Santa Cruz ou às Lajes comprar as injecções, que as não há aqui na Fajã.
Cumpriram-se com rigor as prescrições médicas e, alguns dias depois, eu estava são que nem um pero e meu pai aliviado.
Passaram-se mutos anos, sem que nunca mais visse o dr Freitas Pimental. Certo dia, porém, ao embarcar no aeroporto da Horta, dei com ele, só, abandonado, triste e melancólico, num canto da sala de espera. Cuidei que era a altura de lhe agradecer o que ele, há muitos anos, fizera por mim. Com alguma hesitação, aproximei-me, cumprimentei-o e apresentei-me, recordando o episódio de há muitos anos em que ele me havia curado. Que se lembrava muito bem das suas idas à Fajã Grande, mas não se lembrava de me ter tratado. Que procurara sempre ajudar a todos, mesmo quando lhe solicitavam cuidados médicos. Que nunca se recusara a tratar um doente e que sempre o fizera, sobretudo, naquelas localidades onde, na altura, não havia médico.
Agradeci-lhe mais uma vez e despedi-me. Para espanto meu, o antigo Governador Civil da Horta disse-me:
- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!
Carlos Fagundes
6 comentários:
Olá Sr.Carlos
Mais um excelente artigo seu. E que Beleza que este contém! A generosidade é o mais belo sentimento que podemos ter.
Já agora,e sem revelar pormenores,digo-lhe que já uma vez na vida tive uma atitude semelhante e senti-me muito bem com a minha consciência. A resposta do meu interlocutor foi:"Você tem muita ternura.Conserve-a". Creio que o significado de ambas as respostas,não é muito diferente.
Bem haja.
- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!
Isto só pode vir de um Homem Grande, com o coração do tamanho do mundo.
Isso passou-se naqueles anos,hoje já não é bem assim,oxalá esteja enganado.
Em falar do Doutor Freitas Pimentel eu conheciu em criança ainda nos anos 60 e à poucos anos a falar com um Faialense que vive na Terceira ele em saber que eu era das Flores falou-me do Doutor Freitas tinha cido muito bom para as crianças pobres do Faial e pelo o Natal destribuia pelas casas daqueles
mais pobres prendas e que tinha recebido muitas vezes.
Em 1970, uns dias antes do Natal, recebi a visita da Ordenança do Governo Civil da Horta. Com ele um convite do Sr. Governador para no dia de Natal tomar o pequeno almoço com o ilustre casal Freitas Pimentel.
Eu estava sózinho na Horta porque a minha família havia emigrado para as Américas. Eu ficara atrás para cumprir o serviço militar que, na altura, era obrigatório.
Gestos como todos os que aqui foram apontados, entre muitos outros, demonstram o humanismo do Grande Homem que foi o ilustre filho daIlha das Flores, o Sr. Dr. António de Freitas Pimentel.
Com muito respeito pela sua memória,
Alexandre
D.ro Freitas Pimentel foi um Homem da sua Ilha das Flores muito fez por ela. Ele como Governador a nossa Ilha foi das primeiras a ter agua encanada nas Freguesias foi no tempo dele que se fez muitas obras nas freguesias e a começar por se fazer escolas e muito mais. Foi um Homem que os florentinos não podem esquecer que ele sempre lutou para a sua Ilha por isso em certas coisas andamos à frente de outras Ilhas principalmente no que toca a agua encanada. Estive na Ilha do Pico em serviço no ano de 1979 na Madalena e ainda não havia agua encanada para as casas e no ano de 1980 andei na Ilha Terceira e foi neste ano que começou as Freguesias a ter agua encanada para as casas.
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