quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

«Brumas e Escarpas» #2

Quando o Carvalho Araújo fazia serviço na Fajã Grande

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho [navio] Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades: em Santa Cruz e nas Lajes. Como ambas as vilas estavam e ainda estão actualmente viradas a Leste, sempre que o mar estava bravo numa, ainda estava pior na outra, impedindo assim aquele paquete de fazer o serviço na ilha, o que se verificava geralmente uma vez por ano e no Verão.

Quando tal acontecia, em contrapartida o mar na Fajã Grande, freguesia voltada a Oeste e com um pequeno porto protegido por altas rochas, estava calmo e tranquilo. O vento era, com se dizia, “de cima da terra”. Nessas condições só era possível ao Carvalho fundear e fazer serviço na Fajã Grande, pese embora a grande oposição das populações de Santa Cruz e das Lajes, nomeadamente dos comerciantes daquelas duas vilas. É que só havia estrada até aos Terreiros e de lá até ao porto da Fajã, os passageiros tinham que ir a pé, atravessando rochas e veredas, saltando ribeiras e grotões, percorrendo ladeiras, atalhos e calcorreando caminhos maus e estreitos. Apenas os doentes eram transportados a cavalo ou em carros de bois e, os casos mais graves, em macas levadas aos ombros. Além disso os passageiros ou os seus familiares e amigos tinham que carregar a própria bagagem às costas.

Mas o principal e grande problema era o do gado e da manteiga que se havia de embarcar e, sobretudo, da mercadoria que o navio trazia e que teria que ser descarregada no porto da Fajã e depois transportada para os Terreiros a fim de ser levada em camionetas para as vilas. Assim todos os sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal e de petróleo ou gasolina, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga que o navio trazia com destino à ilha, tudo era descarregado no porto da Fajã Grande e transportado para os Terreiros em carros de bois, o que acarretava um enorme aborrecimento e uma despesa acrescentada para os comerciantes das duas vilas a que as mercadorias se destinavam. Por tudo isto, toda a população das Flores detestava e barafustava com a vinda do Carvalho para a Fajã Grande.

Ao contrário este dia na Fajã era de grande festa, contentamento e regozijo. Era rigorosamente, mais do que o tradicional “dia de São Vapor”, pois era uma verdadeira festa, a “Festa de São Vapor”. Nesse dia ninguém trabalhava nos campos, nem sequer havia escola ou catequese e toda a população se deslocava para o Porto, uns para trabalhar na carga e descarga, outros para arrumar e acartar a mercadoria e outros simplesmente para apreciar o espectáculo. Além disso, quase todos os carros de bois que existiam na Fajã eram requisitados para transportar a carga até aos Terreiros. Como os meios eram reduzidíssimos e menos operacionais do que os de Santa Cruz ou das Lajes, esta azáfama era muito demorada, prolongando-se por todo o dia, pela noite dentro e até de madrugada.

E era precisamente à noite, enquanto os homens paravam os carros carregados com os sacos de açúcar e outras mercadorias fora das suas casas, para uma frugal ceia, que nós, os garotelhos de então, à socapa, aproveitávamos uns pequenos buraquitos que os sacos de açúcar traziam e alargando ligeiramente a serapilheira, deitávamo-nos debaixo dos carros de boca aberta e voltada para cima, com as mãos a fazer de funil, a encher a barriga com o açúcar, que ia caindo a conta-gotas, vingando-nos da abstinência que dele tínhamos nas nossas casas durante todo o ano.

E creio que era esta a principal e mais importante razão porque eu e os ganapelhos da minha idade gostávamos tanto de que o Carvalho fizesse serviço na Fajã Grande, ao contrário dos comerciantes das Lajes e da Vila, que penalizados por tantas contrariedades, nem por sombras desconfiavam que, ainda por cima, lhe papávamos uma pequenina parte do açúcar que importavam de Lisboa.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

4 comentários:

Anónimo disse...

Foi no porto da Fajã, numa das escalas do Carvalho Araújo, que conheci um rapazote atarefado nas descargas, que vei a ser meu marido

Anónimo disse...

eu ainda sou do tempo da camioneta do Silveira

Anónimo disse...

Hardlink recorda-se:

No meu tempo? Qual camionete!.. Qual transporte a motor!. Apenas havia um automóvel muito velho em Santa Cruz.
Rodava tanto como um canário numa gaiola; por não haver estradas e o carro não prestava. Eu o vi uma vez quando lá fui.

-Trabalhava a petróleo e fazia mais fumo do que a chaminé do Carvalho Araújo.
Nas Lajes, apenas havia uma bicicleta. Eu a vi chegar e rodar pela primeira vez na estrada das Lajes, rente à vigia, pelo José do Espírito Santo, filho do Sr. Maurício Fraga.

-Ele nem a sabia pedalar e, quando a montava, tinha que ser numa ladeira com as pernas muito abertas que tomava a estrada toda.

Para maior divertimento, a inauguracão da rodagem foi feita na estrada lá perto do José Araújo, havendo mais de 20 espectadores a assistir.

-Ele ia a pé com ela na mão.Quando chegava à curva da Grota de Serpa, escanchava-se nela, que vinha tão direitinha como uma [mijadela], sendo um tal fugir para não sermos apanhados.
Mais tarde, ouviu-se dizer que ele andava como um cristo, com os joelhos todos esfolados dos trambolhões.

Denis Correia Almeida
Hamilton, Ont. Canadá.
hardlink@aol.com

Anónimo disse...

como dizia um amigo que era do tempo da camioneta do germano silveira. eu ainda sou mais para trás do tempo em que havia nas lajes um frigorifo a petroleo na casa do senhor luis castelo no monte e ele fazia servetes e vendia a dez centavos cada um só que para arranjar dez centavos era um penar mas lá se ia apanhando umas sacas de erva feiticeira e lá se vendia a dez centavos cada uma e as galinhas agradeciam.