«Brumas e Escarpas» #3
Nunes da Rosa, as «Pastoraes do Mosteiro» e a Lenda da Cruz da Caldeira
Francisco Nunes da Rosa, filho de emigrantes naturais da ilha do Pico, nasceu na Califórnia, em 22 de Março de 1871, estudou no Liceu da Horta e no Seminário de Angra, ordenando-se sacerdote em 1893, altura em que foi nomeado pároco da freguesia do Mosteiro das Flores, cargo que exerceu até 1896, tendo sido, nesse ano, transferido para a paróquia das Bandeiras do Pico. Nunes da Rosa distinguiu-se também como escritor e jornalista, pese embora a sua obra literária nunca tenha obtido o reconhecimento público que talvez lhe fosse devido.
Durante os anos que viveu e paroquiou no Mosteiro, Nunes da Rosa, escreveu um dos seus mais interessantes livros, «Pastoraes do Mosteiro», um conjunto de contos naturalistas e idílicos, de uma simplicidade e singeleza ímpares e onde revela os traços físicos e humanos da ruralidade não só da freguesia do Mosteiro mas também da ilha das Flores, nos finais do século XIX, bem como costumes, vivências e tradições de um quotidiano laborioso mas alegre, pobre mas pleno de simplicidade, isolado mas repleto de ternura, de amor, de carinho e de troca de afectos.
Entre os vários contos que compõem as «Pastoraes do Mosteiro» há um, intitulado “A Cruz da Caldeira”, escrito em 1894, que, pelo seu conteúdo e por se enquadrar entre algumas lendas ou “estórias” que nos eram contadas pelos nossos avoengos, tem, em minha opinião, um interesse desmesurado e uma singularidade específica. Nele, Nunes da Rosa traz-nos ao vivo os antigos serões em que as pessoas se juntavam nas casas umas das outras para conversar e jogar às cartas mas também para se ajudarem reciprocamente nas tarefas agrícolas e domésticas, como era o caso do “encambulhar” e descascar o milho. Durante estes serões contavam “estórias” ou casos passados antigamente, geralmente caldeados com lendas, tradições e algo de estranho, misterioso ou até sobrenatural que, supostamente, tivesse acontecido. É o caso narrado pelo autor, neste conto, em que durante um serão numa casa do Mosteiro, o Tio José de Freitas, para espanto de todos os presentes, conta a “estória” de um homem que apostou com os outros ir, à meia-noite em ponto, à Quebrada da Muda, junto à Ribeira de António Luís, para os lados da Caldeira, dar três assobios, quando era crença comum entre o povo de que a meia-noite era a hora do diabo e quem assobiasse àquela hora corria sérios riscos de ser levado pelo “Cão Preto”.
Eu próprio, quando criança, ouvi muitas vezes contar a lenda da Cruz da Caldeira, no essencial muito semelhante à narrada por Nunes da Rosa, pese embora a obra deste escritor, muito provavelmente, à altura, não fosse conhecida na Fajã Grande. Contava-se nos serões em casa do meu avô, que certa noite, na Caldeira, se juntaram numa casa várias pessoas a seroar. Alguns eram da Caldeira, outros da Fajãzinha. Começaram a falar e a discutir sobre medos e temores, sendo que a maioria acreditava que a meia-noite era a hora do “Cão Negro” ou do Diabo e que a essa hora não se podia nem se devia assobiar e quem o fizesse seria arrastado pelo mafarrico, para as profundezas do abismo. No meio dos presentes havia um homem com ar de valentão e muito “anamudo” e que fez uma aposta: era capaz de ir à ribeira, sozinho, dar três grandes assobiadelas, quando batesse a meia-noite. Os outros que ele não ia, ele que ia. Aposta combinada e lá foi. Ficaram todos calados, cheios de medo e à espera dos assobios. À meia-noite em ponto ouviram o primeiro muito forte. Logo a seguir, ouviram o segundo muito fraco e já nem ouviram o terceiro. Ficaram todos apavorados. Alguns ainda pensaram em ir à ribeira mas não tiveram coragem. Ninguém dormiu naquela casa, durante o resto da noite, à espera do homem que nunca regressou. De madrugada foram à ribeira procurá-lo mas viram apenas restos de sangue, percebendo então que teria sido arrastado pelo Diabo para um enorme buraco que havia na ribeira. Procuraram por todo o lado, mas o homem nunca mais apareceu. Esse terá sido o motivo pelo qual foi construída uma cruz, a Cruz da Caldeira, que ainda hoje existe, precisamente no sítio onde foi encontrado o primeiro sangue, e que se situava no antigo caminho entre a Caldeira e a Fajãzinha, antes da descida da Rocha dos Bredos.
Nunes da Rosa termina o seu conto com esta informação: “E eu vos digo em verdade, que tenho visto o povo descobrir-se com um religioso terror, diante da Cruz da Caldeira!”
Carlos Fagundes
6 comentários:
Eu em criança já tinha ouvisto falar sobre esta hestoria, e agora ao ler veio avivar o que eu já tinha ouvisto á mais de cinquenta anos foi muito bom o Senhor Carlos Fagundes ter recordado esta e outras mais hestorias da nossa ilha. E a preposito de hestoria não sei se esta foi passada na nossa ilha é o seguinte. Houve um Homem que usava garbardina e num convivo com colegas apostou que á meia noite ia a cimiterio pregar um prego num campa e ao pregar prendeu a gabardina e ele ao levantar-se pensou que era o diabo a puchar por ele e lá morreu.
Gostei muito de voltar a lê-lo. Espero que o regresso ao Pico da Vigia seja em breve.
Essa da gabardine também se conta na Terceira
O padre Nunes da Rosa foi um extraordinário contista.
Já li os «Pastorais do Mosteiro», cujos contos, bucólicos ou com intuito moralista,nos remetem a tempos já idos, onde o homem vivia em harmonia com a Natureza e com devoção ferverosa em Deus.
Um outro notável livro de contos do mesmo autor é a colectânea «Gente das Ilhas».
Nunes da Rosa é indubitavelmente o melhor contista açoriano de todos os tempos.
A sua obra literária deveria constar dos programas do ensino secundário nos Açores da disciplina «Português/Literatura Portuguesa».
Foi um privilégio para a Ilha das Flores ter tido no seu seio tão ilustre pároco, escritor, divulgador cultural e jornalista.
Hardlink diz:
Leio sempre os escritos deste Senhor Carlos Fagundes.
Entusiasma lê-los!..
Estórias contadas sem ornamentos na escrita.Não porque esse senhor não tenha do bom e do melhor.
Ao Pico da Vigia já lá fui duas vezes. Pois é!.. Aqui está outra prova e vantagem das pessoas instruídas e humildes. Semelhante ao homem fisicamente alto que, ao se aproximar-se duma criança para lhe falar, não fica na -Posição Vertical- para a intimidar, mas sim: abate-se para a altura da criança pondo-a à vontade.
Esta é a arte do bem escrever.
Saber empregar uma forma de ortografia mais fácil e clara para todos.
Para quem quer mostrar a sua intelectualidade e credibilidade académica, há sempre ocasião de o fazer e trazer à superficie tudo o que sabe, sem usar estórias simples do povo, e as enfeitar com palavras que imprecionem o leitor.
DCA
Denis Correia Almeida
Hamilton, Ont. Canadá.
Hardlink@aol.com
Gostaria da adquirir um livro desses alguem sabe informar-me onde?
Enviar um comentário