terça-feira, 2 de março de 2010

«Preto no Branco» #43

Solidariedades da treta

Se nos Açores os efeitos sociais da crise (ainda) não se fazem sentir como no Continente e nas Flores (ainda) não tanto como noutras ilhas, o certo é que, à nossa escala, começam a intensificar-se diversos sinais de carências várias, nalguns casos muito preocupantes e reveladores de que a palavra «miséria» entrou de novo no nosso quotidiano, com um grau de gravidade que há muito não conhecíamos e estávamos habituados a considerar uma «história do passado».

É claro que hoje em dia a realidade social não tem nada a ver com a vivência de outrora, donde, para problemas novos exigem-se novas respostas, isto, sem embargo do indeclinável papel que cada membro da comunidade, individualmente, e cada família, por junto, têm o dever de continuar a exercer, não obstante a rede de mecanismos directa ou indirectamente apoiados pelo Estado, incomparáveis com o suporte que existia dantes.

Várias são as instituições de solidariedade social e muitos são aqueles que através delas dão o exemplo de como bem aplicar os recursos disponíveis, para além das suas acções no dia a dia serem pautadas por um sentido de «dever», «serviço», «missão», e até «sacrifício», que não têm preço e não estão escritos em lado nenhum, mas antes traduzem os bons princípios que devem presidir a conduta de quem oferece o seu labor à causa social/comunitária. Esses hão-de rever-se nestas linhas. Outros não... santa paciência! Há verdades que a verdade manda dizer: Assim, não pode ser!

Não há vila ou concelho que não tenha: uma Santa Casa da Misericórdia; uma Casa do Povo; uma Associação ou Movimento de benemerência disto ou daquilo; um Agrupamento de Escuteiros; um Centro da Cáritas; uma Obra da Paróquia; um Lar de Idosos; um Serviço de Acção Social Municipal; uma repartição dos Serviços de Segurança Social do Estado... e o "diabo a sete". Capelas e mais capelinhas e mais capelas!
Sabem por que é que essas entidades, muitas vezes, na verdade, são criadas e para que servem? Para sorver dinheiro ao Estado - a "fonte" acaba por ser sempre o orçamento público - para justificar uma sede, órgãos sociais, um departamento administrativo, (que alberga filhos e enteados), recursos e meios, ao serviço dos interesses dos capatazes, por sua vez "feitos" com a necessidade de albergar as sua "clientelas", que lhes justificam o sustento... Isto tem que ser dito, de nada vale assobiarmos para o lado ou sermos hipócritas.

No "País profundo", que não apenas nos maiores centros urbanos, onde se contam as ilhas, a questão social é já um caso muito bicudo também. Importaram-se os males dos meios maiores e perderam-se as virtudes dos pequenos.
A classe média, maioritária, está “entalada” pelos Bancos até à raiz dos cabelos. Nos Açores, vão valendo os subsídios à lavoura, os “favores” públicos e os rendimentos mínimos, para assegurar liquidez às famílias.
Os miúdos, não aprendem a ler, escrever e contar, não sabem dizer “Bom Dia”, e são alimentados a refrigerantes, batatas fritas e "bollycao". Os professores vão dar aulas "à rasca", com medo dos pais. Os idosos, sobrevivem aflitos, em cada vez maior solidão e passam necessidades. As toxicodependências, para lá do álcool, deixaram de ser um fenómeno urbano e germinam como junco. O planeamento familiar é de gargalhada. A higiene tresanda. O sentimento de impunidade perante o crime começa a ser regra geral. O individualismo tomou conta das comunidades, que estão a perder completamente a noção de consciência colectiva. Poucos são os que ainda se fiam da “palavra dada”, etc., etc., ... enfim, andamos todos a fazer de conta.

E a providência social, em cada uma das localidades? Onde está ela?
Caiu largas vezes, definitivamente, nas mãos de caciques da pior espécie, que pensam assim: "vamos criar/ocupar uma instituição porque depois isso dá direito a protocolos com a Autarquia e o Estado e é uma maneira de sacar dinheiro e benesses”.
Depois, o Estado, central ou regional, também ele demissionário, vem com a lógica do «descentralizar». E toca a distribuir e a «adubar». Na paga, de 4 em 4 anos, muitas dessas ditas IPSS´s (instituições públicas/particulares de solidariedade social) lá vão movendo as suas influências e arregimentando votos para o "cavalo certo”, em que apostam, consoante os arranjos privados mais convenientes.

Resumindo. A raiz do problema está em duas coisas; dinheiro e votos. A caridade cristã serve de “tapa poros”, abrilhantado com vernizes de apregoada “Solidariedade".

Essa mesma solidariedade que, com tantos meios afectos, nunca foi tão perversa, cínica e corrupta como agora, diga-se, Preto no Branco.

Ricardo Alves Gomes

PS: Para quem se der ao trabalho aqui ficam algumas ligações, as quais ajudam a ter ideia das “capelas” existentes, e que todos os dias sorvem o escanzelado Estado:

6 comentários:

Anónimo disse...

Existem nos Açores instituíções ditas particulares de solidariedade, que exploram os sentimentos de caridade do povo açoriano, para fazerem politica e promoverem os seus dirigentes.

A luta contra a miséria não deve ser objecto de politicas.´Todos temos obrigação de olhar os mais desprotegidos.

Mas também todos temos tendência a estigmatizar, a ver naqueles que por contigências diversas, ou mendigam ou recebem o rendimento minimo, como malandros.

E faz-se o quê com essa gente?

MILHAFRE disse...

Mais um magnifico post do Dr.Ricardo Alves Gomes.

O tema abordado - a solidariedade - é bastante actual e assertivo.

Muito há a dizer e a comentar sobre isto , mas desde já vos digo que o sentido genuíno da palavra SOLIDARIEDADE ultimamente tem sido subvertida e tem enchido a boca a muita boa gente para promoverem os seus interesses pessoais e até politicos.

Basta ver a «geografia» e a «tipologia» das diversas «ipss's» e constatar a luta tremenda que diversas forças de bastidadores fazem para as tomar de assalto. Até nas corporações de bombeiros esta estratégia está subjacente aos agentes politicos em presença.

A «Solidariedade» - vocábulo que veio substituir «socialisticamente» o vocábulo proscrito «caridade» - hoje em dia é uma grande «indústria» que consome milhões e milhões do erário público.

Há instituições que nem «misericórdia» têm pelos desgraçados dos idosos que lá estão internados!

Ricardo Alves Gomes disse...

Agradeço o comentário, o qual merece que abra excepção para responder, isto porque de há uns tempos para cá decidi não intervir nesta parte.

Pois bem. Não é preciso haver nehuma calamidade...
Há montes de coisas para fazer, nas mais diversas áreas. Só dignificaria. Tanto o Estado, como quem hoje está "socialmente excluído".

A prazo, muitos encontrariam oportunidades para se libertar do "estigma" que os onera. Ganhariam autonomia financeira e encontrariam realização profissional.

Por outro lado, conquistada essa independência, deixavam de estar à mercê da assistência ou do "favor", por vezes de tiranetes que "cobram" as subvenções que entregam ou os apoios que por intermédio disto ou daquilo prestam...

Esses, uma vez com menos "fregueses", menos dinheiros públicos teriam para esbanjar "à grande e à francesa", como também seriam obrigados a gerir criteriosamente as verbas disponíveis, que devem existir, sim, mas ao cuidado de quem, efectivamente, tem idoneidade e competência para administrar, ao serviço de quem efectivamente mais precisa.

Caso contrário, corremos seriamente o risco de qualquer dia não haver recursos disponíveis para ninguém...

No fundo, isto mais não é que a ideia de "libertar a sociedade civil das teias do Estado".

É preciso começar por algum lado. Embora não seja uma "receita acabada", o princípio que lhe subjaz está certo. Aponta um caminho, que embora sujeito a eventuais "perversões", a verdade é que não se destina a "dar emprego" só por dar, na lógica da "parasitagem", mas antes alcançar resultados visíveis, convocando os recursos humanos disponíveis, sem "passar cheques em branco".

Eis um exemplo:
(…) O Instituto de Emprego da Madeira vai disponibilizar aos serviços públicos, às autarquias das zonas afetadas e às instituições sociais e comunitárias envolvidas no apoio às populações atingidas a colocação de desempregados através do Programa Operacional de Trabalhadores Subsidiados, ao qual é dada toda a prioridade (…) O governo regional refere que "este programa não tem custos para as instituições", já que "os desempregados continuarão a receber a respetiva prestação social, acrescida de um subsídio complementar equivalente a 25 por cento da remuneração mínima, do subsídio de transporte, do subsídio de alimentação e de um seguro de acidentes pessoais.

(excerto de notícia da Agência Lusa, 01.03.2010)

PS: Vou mais longe. As subvenções asistenciais do Estado deviam estar condicionadas à prestação de trabalho comunitário, sob pena de resolução.
Para isso, seria necessário introduzir alterações à legislação nacional. Admiro-me é que ninguém as proponha...

Fica para outro dia... por hoje, creio já haver matéria bastante que suscite uma boa discussão, o que é sempre bastante enriquecedor e vai de encontro àquilo que é desejável acontecer no "Fórum".

INSURGENTE disse...

Naquilo que diz respeito ao nosso meio,só haverá crise quando o Estado deixar de pagar aos fucionários das Câmaras, Mesiricórdias, professores e funcinários,Serviços agrícolas, Finanças, Tribunal,reformados, subsídios de inserção etc.

As poucas empresas que existem servem práticamente para nos manter vivos. (Supermercados,cafés, um pouco de construçao civil e pouco mais).

Se houver "Banca - Routa",teremos que voltar às origens, ou seja:
Pescar o nosso peixe, criar os nossos animais, fazer agricultura de subsistência,ou então fugir daqui.
UTOPIA? Veremos?!

MILHAFRE disse...

Até o Banco Alimentar serve para angariar eleitores e votantes...

Segundo a minha modesta opinião a única forma de combater a pobreza, é criar riqueza e desenvolver as capacidades da nossa população por intermédio da educação, instrução e formação profissional permanente.

Quem cria riqueza não é o Estado (embora este possa ter o poder de alavancagem), mas sim as empresas e os cidadãos singulares.

Uma sociedade que produz e que educa os seus membros é uma sociedade viável e auto-sustentável.

O que está sucedendo no país - e muito concretamente na nossa Região Autónoma - é a sucessiva inversão da equação.

Em vez de se produzir para se distribuir, a ideologia politico-social vigente preconiza primeiro a distribuição (consumo) e a produção e a criação de riqueza fica secundarizada.

Como não há recursos suficientes nem poupanças suficientes cada vez mais se recorre ao endividamento e à contracção de despesa a descoberto.

Ora, este ciclo vicioso (distribuir/consumir primeiro e trabalhar depois) é diametralmente
oposto ao ciclo virtuoso de produzir (criar riqueza) e distribuir depois, quer por via da redistribuição fiscal, quer por via da segurança social.

Não é por acaso que o país (e a Região, convém não esquecer) está no estado em que está.
Distribui-se o que temos e o que não temos; habituamos as pessoas a pedinchar e a pedir subsídios; penaliza-se a iniciativa com taxas sociais e uma carga fiscal excessiva; persegue-se fiscalmente quem ainda produz e que quer trabalhar,etc.

E como este ciclo vicioso produz em progressão geométrica cada vez mais miséria, surge em paralelo uma infindável rede de ong's, ipss's, associações diversas,etc. onde são drenados cada vez mais recursos oriundos daqueles que ainda têm alguma capacidade de pagar e não têm possibilidade de se furtarem às suas obrigações: a indispensável classe média.

Um país com uma classe média e dimâmica é um país que tem margem para progredir.

Não é o que acontece hoje em dia em Portugal onde cada vez mais elementos da classe média estão a engrossar o grande exército dos novos-probres e que mais tarde ou mais cedo vão encostar-se à pobreza endémica que pelos padrões europeus são já dois milhões.

Tudo isto a própsito da «bolha do social» que uma determinada «indústria» potencia a mando duma classe politica parasitária e perdulária, e que deixa para as próximas duas gerações um país cheio de dívidas e miséria.

Mas enquanto houver necessidade de «votos mínimos garantidos» nada será feito para contrariar o empobrecimento geral a que estamos sujeitos, até ao dia que não houver dinheiro para pagar ordenados, reformas e prestações sociais.

Ricardo Alves Gomes disse...

Tal qual! Nem mais.
Agora, e "meter" isso na cabeça desta gente, a começar pela "classe dirigente"?
Só vejo uma hipótese. A mais drástica. A "torneira secar"...