sexta-feira, 3 de julho de 2015

Uma viagem "fora de rota" pelo verde e pela(s) água(s) da ilha das Flores (3/3)

Gosta de percursos pedestres? Então vai adorar as Flores. A ilha é reconhecida como um paraíso para passeios pedestres. Se considerarmos que já teve cerca de três vezes mais habitantes que hoje, e pensarmos que para se deslocarem precisavam de desbravar caminhos, conseguimos perceber a imensa rede de trilhos que existem.

Nos tempos em que teve mais habitantes todos os recantos da ilha eram aproveitados para a agricultura - até nalguns dos ilhéus se chegou a criar gado e ainda hoje se vêm ruínas de muretes nos sítios mais recônditos, o que constitui testemunho do intensivo aproveitamento dos solos que as Flores já tiveram.

Muitos dos caminhos já foram ‘comidos’ pela vegetação, mas entre os mais velhos ainda há memória dessas veredas. Pierluigi Bragaglia, um italiano que reside na ilha das Flores desde 1990, tem um trabalho notável no mapeamento desses troços e desde sempre tem alertado as autoridades para a necessidade de reabilitá-los.

Neste momento existem quatro percursos oficiais, devidamente marcados, mas muitos mais poderão nascer se houver vontade política para tal. Até lá resta nos socorrermos do livro “Ilha das Flores - Açores: Roteiro Histórico e Pedestre” editado por Pierluigi Bragaglia, onde encontramos excelentes pistas sobre estes antigos caminhos. Neste capítulo pode ver o registo de dois dos percursos oficiais que tive o privilégio de fazer, e um outro que eu próprio descobri.


Miradouro das Lagoas-Poço do Bacalhau: lama, lagoas, precipício e por fim uma descida alucinante...

O planalto central das Flores é uma enorme cratera, semeada de outras mais pequenas. Com o passar do tempo e muita chuva as ‘craterinhas’ transformaram-se em lagoas. É aqui que nascem muitas das ribeiras da ilha, e as inúmeras linhas de água que cruzam a imensa cratera formam um dédalo que extravasa em muitos sítios, transformando o terreno num autêntico pantanal.

É neste cenário que se inicia este percurso pedestre PR3FLO. Abandono a cratera pela parede ocidental do grande vulcão, e lá em cima sou brindado com a visão do imenso mar a que não vejo o fim, mas que sei só acabar no continente americano. Ando mais um pouco, e acaba a terra plana. Estou à beira do precipício e parece-me impossível haver um caminho que me permita descer até lá abaixo, à Fajã Grande.

Mas há, e é um hino à engenharia popular, ao engenho dos colonizadores florentinos.

As terras no planalto são boas pastagens e não se podiam desprezar. As pessoas moravam todas cá em baixo e tinham de ir lá acima ver se o vitelo tinha nascido bem, ou se nenhuma vaca se tinha escapulido. Também tinham de trazer o gado condenado à panela cá para baixo, e raro era o dia em que não tinham de subir ou descer aquela falésia. E claro que um caminho cuidado, com sólidos degraus onde necessários, ajudava essa labuta.

Hoje em dia as vacas continuam a pastar lá no alto, os seus donos a cuidar delas diariamente, mas o velho percurso só é usado por caminhantes modernos que o fazem por gozo - e aqui fico a pensar no espanto que as pessoas que palmilhavam aquele caminho com grande esforço demonstrariam, se alguém lhes dissesse que no futuro haveria gente a fazer aquele troço por prazer.

Os vaqueiros modernos deslocam-se em pick ups 4X4, e quase dão a volta à ilha para fazer o percurso que antes tinha um vigésimo da distância. Mas é certo que se cansam menos - tal como as desgraçadas das vacas que também vão de carrinha... a caminho da panela.


Lajedo-Fajã Grande: pelas arribas da costa ocidental, por caminhos que a carroça do sal e do vinho fazia antigamente

O velhote do café/mercearia da Fajãzinha, o senhor José Baldes, perante as queixinhas fúteis das dificuldades da descida que tinha acabado de fazer, devolveu-me de imediato à razão:

“E você achou o caminho difícil? Imagine lá então o que era fazer chegar cá abaixo um carro puxado por uma junta de bois, carregado com sacos de sal para a carne da matança, e com ‘pinga’ do Pico? Eram homens à frente, e homens atrás, descalços, com cordas atadas à carroça para ela não embalar. Isso sim era difícil. Agora descer a pé, com essas varas modernas que vocês usam, é mais fácil que ir ali abaixo ao mar e voltar”.

Pois...

Este antigo acesso à Fajãzinha é o troço mais bonito desta caminhada. A meio da descida vemos ao longe a encosta ícone da ilha das Flores, por onde se despenham a ribeira Grande e as outras ribeiras que alimentam a Poça das Patas ou Alagoinha.

Logo depois temos uma vista privilegiada sobre a Fajã Grande e, no fim da descida, entramos na Fajãzinha. É uma localidade com um centro preservado, e que tem como umas das ‘atrações’ o estabelecimento comercial do senhor Baldes, onde se pode beber um cafézinho e dar dois dedos de conversa, numa pausa retemperadora para o resto da caminhada até à Fajã Grande.

Desde o Inverno de 2013, quando a ribeira Grande arrastou a ponte da Fajãzinha, que o troço final deste percurso teve de ser alterado. Dantes continuava-se nas arribas até à Fajã Grande, mas agora faz-se um desvio pela estrada que corre lá em cima junto à Poça das Patas.

O senhor Armando, motorista do autocarro dos transportes públicos da ilha, função que acumula com a de criador de vinte vacas, garantiu-me que conseguiria atravessar a ribeira a vau: “E na outra margem, depois dos destroços da ponte, tem o antigo caminho com as marcas do percurso ainda visíveis. Por ali chega mais depressa ao seu destino e vai sempre a ver o mar.”

Assim fiz. Passei a ribeira a vau, mas foi difícil e só o consegui mesmo junto ao mar, com água pela cintura. As marcas do percurso lá estavam, o caminho tinha algumas ervas altas mas consegui passar. Só que, abruptamente, a vereda terminou num precipício e percebo que parte do antigo caminho caiu ao mar.

Alternativas? Dar a volta por dentro e tentar reencontrar o percurso lá mais à frente, ou voltar para trás. Decido seguir em frente.

Salto um primeiro murete, salto um segundo, e antes do terceiro está um terreno com vegetação mais alta do que eu. Bastante arranhado mas inteiro, consigo chegar ao terceiro muro, salto para o outro lado, e vejo lá à frente um carreiro junto à falésia. Era novamente o caminho.

O senhor Armando esqueceu-se de me avisar da derrocada, mas assim até foi mais empolgante.


Planalto Central à foz da ribeira do Moinho (parte de carro, parte a pé): a costa norte tem o seu encanto. Tem o Farol do Albernaz, tem a ribeira do Moinho, e tem o Restaurante O Pescador

Ia de carro a caminho do Morro Alto, o cume da ilha das Flores com 914 metros, quando vi uma cortada à esquerda indicada no mapa como estrada sem saída. Avancei por ela.

Andei um ou dois quilómetros, parei para tirar fotografias, guiei mais outros tantos quilómetros, até que compreendi que segundo o mapa, e atendendo à distância já percorrida, há muito que teria chegado ao fim.

Afinal o mapa estava desatualizado e consegui percebê-lo no horizonte: distinguia perfeitamente o traçado da estrada a serpentear até ao Farol do Albernaz, no extremo noroeste da ilha.

O caminho a pique, paralelo ao vale da ribeira do Moinho é lindíssimo, e desde logo fiquei enfeitiçado por esta ribeira que dizem ser “a ribeira com o caudal mais constante da ilha, com trutas e tudo”.

Visto o farol ao perto, tomei a direção de Ponta Delgada até chegar à ponte que atravessa a ribeira do Moinho. Estaciono o carro e inicio aqui a caminhada do dia.

Em cima da ponte escuto o barulho inconfundível de uma queda de água, e adivinho-a atrás de um grande penedo que tapa a vista. Um senhor que passa, guiando cinco vitelinhos, aponta-me o caminho para chegar à cascata, e lá vou eu. Tenho de atravessar a ribeira para ver a queda de água de frente, mas vale a pena o esforço. É muito bonita e forma um grande lago em frente, ideal para uns mergulhos.

Tento seguir o curso da ribeira até à sua foz, que fica a uma centena de metros dali, mas não me arrisco naquelas pedras com limos escorregadios. Volto à estrada, e entro lá mais à frente, num prado grande que parece estender-se até à falésia. Chego à beira da ribeira, já junto ao mar, percebo que a água cai de uma altura considerável, mas não consigo ver o sítio onde se mistura com o mar.

Vejo sim, imediatamente antes da água se despenhar, uma encantadora lagoa, metade a céu aberto, metade debaixo de uma abobada de pedra, que parece uma daquelas piscinas de catálogo que acabam no vazio com um horizonte deslumbrante. Só que o vazio desta é o mar, a umas largas dezenas de metros lá em baixo.

Sozinho não me atrevo a nadar nas suas águas límpidas, mas ficou-me a pena que só será levantada quando da próxima viagem à ilha das Flores.

Terminei o dia no único restaurante que menciono nesta viagem, por ser o único onde comi muito bem: O Pescador, em Ponta Delgada, abastecido de peixe e marisco pelo dono, o senhor José Meireles, um dos dois pescadores profissionais que restam neste extremo norte da ilha.

A cozinheira, Ana Maria, mulher do senhor José, tem mão para cozer o cavaco, grelhar as lapas, e fritar o congro e a moreia. Petiscos, que quando voltar à ilha das Flores para nadar na lagoa da foz da ribeira do Moinho, hei-de voltar a saborear.


E para concluir a história...

Resta-me dizer que o velho sonho de conhecer a ilha das Flores superou as expectativas e que fico à espera que as tarifas aéreas baixem - anuncia-se para breve a abertura do espaço aéreo açoriano a companhias low cost - para poder lá voltar.

Só desejo ter novamente a sorte que tive desta vez com o estado do tempo. No último dia da estadia, alguém me dizia: “Você foi um sortudo. Apanhou a primeira semana de Verão aqui nas Flores.” Isto nos primeiros dias de Outono...


Reportagem do «Expresso Diário» e do semanário «Expresso».
Saudações florentinas!!

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