domingo, 19 de setembro de 2010

Crónica «Viagens com bolso»: Na Fajã

Ao fim de 10 dias na Fajã, sabemos em que dia chega cada coisa e o que é que nunca chega. Estou a escrever sobre um lugar de Portugal onde o [jornal] «Público» não existe.
A Fajã tem uma rua que vai da montanha até ao mar, com a igreja, a mercearia, a tasca, o albergue, o largo das árvores e, no fim, em frente ao mar, o restaurante.
No princípio de Setembro, a igreja prepara a festa. Ao lado, a mercearia mantém-se aberta todos os dias das nove às nove. Há o dia em que chegam os bolos lêvedos, a que toda a gente chama "bolos". Há o dia em que chega a massa sovada, a que toda a gente chama "massa", e que é uma espécie de massa de pão-de-leite em forma de pão-de-ló. Há o dia em que chegam os queijos frescos, a que toda a gente chama "os queijos da Ilda", e que são os melhores do mundo. Há o dia em que chegam os iogurtes da ilha, autênticas bombas, em copinhos de vidro. Se há dia para verduras, nunca fiquei a saber, mas são pobres. A Fajã não é bom lugar para saladas.
O albergue parece deserto, de tão quieto. O largo das árvores varia entre dois e três velhos. E no tasco estão os trabalhadores das obras.
Porque há obras na Fajã, e quem me explicou isso foi o meu amigo cozinheiro. É um rapagão de outra ilha com este talento autodidacta, por exemplo, polvo guisado, um polvo do céu. Foi assim que começámos a falar. Cumprimentei-o pelo polvo e ele perguntou-me se eu era do Porto. Do Porto? Porque haveria de ser do Porto? Ah, porque com as pessoas de Lisboa há sempre problemas, nunca nada está bem, disse ele. No fim da conversa, fiquei a saber que éramos vizinhos. Ele também morava na colina. E na conversa seguinte anunciou-me que se ia despedir porque se zangara com o patrão. Mas é fácil arranjar outro trabalho? Ele riu-se, já tinha trabalho, ia para as obras, que era o que gostava mesmo. Mas há assim tantas obras na Fajã? Ui, disse ele. Há muito trabalho nas obras, as pessoas daqui é que não querem. Os homens que param no tasco vêm de fora. E estão a fazer, por exemplo, a segunda, terceira e quarta casas do presidente da Câmara em frente ao mar, ou aquele - como chamar-lhe? - empreendimento em frente às piscinas naturais. Estão a acontecer coisas na Fajã, disse o meu amigo cozinheiro. Felizmente, existe o mar, e o mau tempo, pensei eu. Longa vida ao mau tempo. O mar e o mau tempo são as barreiras naturais dos Açores.
Mas é mesmo pensamento de lisboeta que lá vai 10 dias. A Fajã não quer ser o Funchal mas também não quer ser este isolamento. Não se nasce aqui, não se é operado aqui, mas morre-se aqui, e uma morte é sempre de todos.
No dia em que vim embora, a Fajã estava de luto. Um homem que eu vira na véspera a mondar a erva, foi à rocha apanhar cabras para a festa da igreja e caiu. Eu soube quando o meu amigo cozinheiro me bateu à porta. Ia fazer de bombeiro, recolher o corpo.


Crónica da autoria da jornalista Alexandra Lucas Coelho, publicada (originalmente) no caderno «P2» do jornal «Público», edição desta sexta-feira (dia 17).
dois anos atrás, havíamos publicado uma outra crónica da mesma autora, também versava sobre as suas férias na ilha das Flores.

Saudações florentinas!!

6 comentários:

jota disse...

..."a segunda,a terceira e quarta casas do presidente da Câmara em
frente ao mar"...
Se apanhar uma recta,ainda vai
conseguir meter a quinta...

jota disse...

..."porque com as pessoas de Lisboa
há sempre problemas, nunca nada está bem"...
Por vezes isto revela alguma "cagança" por parte de alguns turistas,mas quem recebe
tambem deve ter a humildade de
perceber que a crítica
pode ser uma mais valia no sentido de melhorar aquilo que está mal.
Os outros, para quem tudo está sempre bem,tambem não nos estimulam a melhorar.

Anónimo disse...

Era giro se o presidente fizesse mais casas pois ele sempre leva a electricidade até á casa dele, assim ficaria o caminho entre a Fajã e a Ponta iluminado.

MILHAFRE disse...

Nos dias d'hoje ser autarca e promotor imobiliário é complicado...

Imaginem o que seria se o homem fosse também presidente dum clube de futebol!

Paulo Ramos disse...

Desta jornalista recomendo "Caderno Afegão". Relata a ida dela ao Afeganistão em trabalho para um jornal e da dificuldade que isso implica em, altura de guerra. É preciso "balls" para tal feito...

jota disse...

"se o homem fosse tambem presidente
dum clube de futebol" como diz o
Dr.Pardal,faria certamente mais
uma casa no campo das Lajes que está às moscas e assim teria alguma
utilidade.