A mulher com pés de cabra na Ladeira das Covas
O Bigorna chegou a casa espavorido, misantropo, desfeito, esgazeado, a tremer como varas verdes e branco que nem cal. Enfiou-se vestido na cama, recusou-se a comer ou a beber o que quer que fosse, rejeitou o travesseiro e cobriu a cabeça com os cobertores. Não tugiu nem mugiu durante o resto do dia. Um caco!
A mulher sabia que ele se levantara bastante cedo para ir ceifar um molho de erva à lagoa das Covas e, muito provavelmente, havia de demorar-se por lá algum tempo, como era seu hábito. Por isso, quando o viu entrar pela porta dentro, àquela hora e naquele estado, abriu a boca até aos ouvidos, perdeu a fala e ficou estancada na cozinha qual estátua de gesso. Depois, despertando de tão inaudita letargia, de um salto, abriu a porta do quarto, abanou o homem, sacudiu-o, balanceou-o, tentou descobri-lo e forçou-o a levantar-se. Mas nada. Parecia morto. É que quanto mais o sacudia mais ele se aquietava, quanto mais o remexia mais ele afrouxava e quanto mais o puxava para fora dos cobertores mais ele se encafuava quedo e mudo, por entre os sulcos das folhas de casca que enchiam o colchão da velha enxerga.
De consumida passou a alvoraçada, de alvoraçada a tresloucada e, concluindo que solavancos, repelões e lambadas naquele corpo inerte de nada valeriam para avivar tão estranho e repentino entorpecimento, desata pela vizinhança a gritar, a berrar e a pedir socorro. Que lhe acudissem. Que acontecera uma grande desgraça. Que o seu homem estava a morrer. Que nunca se vira uma coisa assim. Tanto foi o alarido e tão grande o berreiro que, em breve, a casa se encheu de vizinhas, de préstimos, de conselhos, mas também de lamentações e, até, de suspeitas e de desconfianças. Ali havia gato. Olaré se havia!
E os alvitres começaram a disparar: “Chama o senhor padre”, “faz-lhe chá mastrunços”, “põe-lhe um crucifixo nas mãos”, “tira-lhe os cobertores”, “põe-lhe um pano molhado na testa”, “promete um boneco a Santo Amaro”, “acende uma vela a Santa Luzia”, “dá-lhe canja de galinha...” e por aí adiante. Uma enxurrada de sugestões que não tinham fim. Fez-se de tudo e até o vigário veio com cruz, água benta e livro de exorcismos. Mas nada... O Bigorna quedava-se recolhido no leito, mudo, inerte, estático, indiferente a tudo e a todos, perante o cada vez maior desespero da mulher e o inacreditável espanto dos circundantes.
Passaram-se dois dias, três dias de angústias extremas e de preocupações galopantes e nada. Ao quarto dia, mandada vir do Lajedo de propósito, apareceu por ali a Georgina Benta, muito entendida e experiente em bruxedos e maus olhares. Observou o doente e sentenciou de imediato:
- Há aqui o dedo do mafarrico! Se há... Ou eu não me chamo Georgina Benta. Aqui há bruxedo e dos graúdos. Posso garantir que isto só lhe passa com uma oração do livro de São Cipriano.
A mulher do Bigorna, muito da igreja e muito conceituada junto do pároco e de sua irmã, a princípio não aceitou muito bem a ideia. Mas era o seu homem que definhava dia a pós dia. “Só quem passa por isto é que sabe. Venha de lá a Benta e traga o livro de São Cipriano e todos os livros que quiser e entender. Primeiro que tudo está a saúde do meu homem.”
Entrou-lhe pois a Benta do Lajedo pela porta dentro, de livro, vassoura e balde cheio de água benta. Não esteve com meias medidas e atira para cima do Bigorna a oração da “Cabra Preta”, enquanto o ia salpicando com respingues da água retirados do balde e atirados com a vassoura: “Cabra preta milagrosa que pelo monte fugiu, trazei-me o Bigorna que de minha mão sumiu (...) Bigorna, com dois te vejo, Bigorna com três te prendo, com Caifaz, Satanás, Ferrabás. Ámen!”
Não demorou muito. O Bigorna, ou pelo fresco da água ou pela intercessão de São Cipriano, lá foi escapulindo lentamente da letargia em que se encontrava. Esperneou, contorceu-se, escabujou, esticou o corpo prolongadamente, arregalou os olhos, atirou com os cobertores às urtigas e veio pôr-se à janela, a olhar admirado para a meia dúzia de mirones que lhe haviam parado em frente da casa.
Nunca se soube a quem o Bigorna contou o seu segredo. Mas correndo de boca em boca, toda a freguesia, algum tempo mais tarde, teve conhecimento do que acontecera naquela iníqua madrugada: o Bigorna cruzara-se na Ladeira das Covas com uma mulher, jovem e bela, mas que não conhecera. Voltando-se para trás, por mera curiosidade, seguiu-a durante uns segundos. Foi então que a mulher também se voltou e o Bigorna, estarrecido de medo, viu que da cintura para baixo, tinha o corpo coberto de pêlo negro que parecia pêlo de cabra e os pés, esses eram mesmo bem iguaizinhos aos pés de uma cabra.
Esta era a razão por que muita gente tinha um medo enorme de passar na Ladeira das Covas, onde uma misteriosa mulher, com pés de cabra, aparecera ao Bigorna.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».