quarta-feira, 1 de setembro de 2010

«Brumas e Escarpas» #7

O Carvalho Araújo

O Carvalho Araújo era um velho paquete pertencente à Empresa Insulana de Navegação que durante anos e anos deteve o monopólio do transporte de passageiros e de carga entre o Continente, a Madeira e as nove ilhas dos Açores, as quais demandava uma vez por mês. Apenas entre as ilhas do grupo central circulavam três pequenos iates: o Terra Alta, o Terceirense e o Santo Amaro.

O Carvalho Araújo era um barco enorme. Para além dos cerca de 98 tripulantes, tinha capacidade para o transporte de mais de 350 passageiros e 4.700 toneladas de carga. Tinha sido comprado à construtora italiana Cantiere Navale Triestino havia uns bons trinta anos. Uma placa colocada na primeira classe, na escadaria que dava acesso à sala de jantar, explicava a razão de ser do nome com que fora baptizado, recordando o episódio em que fora protagonista o comandante Carvalho Araújo. Em Outubro de 1918, durante a primeira Grande Guerra, o navio São Miguel fazia uma viagem entre a Madeira e os Açores, transportando passageiros e carga diversa, sendo escoltado pelo navio patrulha Augusto Castilho, sob o comando do tenente José Botelho de Carvalho Araújo. Quando os dois navios se encontravam a algumas milhas da cidade de Ponta Delgada foram atacados a tiro de canhão por um submarino alemão, comandado pelo experiente Lothar von Arnauld de la Perière. Iniciou-se, então, uma dura e árdua batalha naval que se prolongou durante algumas horas e durante a qual o comandante Carvalho Araújo ofereceu brava resistência à artilharia alemã, salvando muitos companheiros mas acabando ele próprio por sucumbir durante o combate. Para homenagear o comandante Carvalho Araújo foi posto o seu nome ao paquete que navegou mensalmente durante dezenas de anos, entre o Continente e as ilhas açorianas.

O navio Carvalho Araújo dividia-se em três partes, correspondentes a três classes distintas. A primeira classe, a melhor e mais cara e destinada aos ricos, ficava no centro do navio e constituía a sua parte mais alta, mais nobre e mais luxuosa, com três andares. No terceiro, para além do enorme convés com uma parte coberta e outra descoberta, ficava ainda a sala de estar, com bar, cadeiras estufadas e mesas de jogo e as salas de comando. No segundo [andar, ficava] a sala de jantar, a cozinha, as casas de banho e os aposentos dos oficiais de bordo. Por baixo destes e já dentro do bojo do navio, ficavam as casas das máquinas e os camarotes, mais amplos, menos susceptíveis aos balanços das ondas, mais limpos, mais arejados e, consequentemente mais caros. Na realidade só os ricos e endinheirados podiam viajar em primeira [classe] e aos restantes passageiros era vedada a permanência na sua área. A segunda classe, separada da primeira pelo porão de carga, ficava à popa, também tinha dois andares sobre o bojo. O preço dos bilhetes já era mais acessível e destinava-se aos remediados. No segundo andar ficava a sala de estar reservada aos passageiros que compravam bilhetes de segunda, circundada por um pequeno convés. A sala de jantar e a cozinha ficavam no primeiro andar. Os camarotes, por sua vez, situavam-se no bojo, mas à ré, pelo que eram bem mais ruidosos e menos confortáveis do que os da primeira [classe]. Finalmente a terceira classe, a mais barata e a pior em todos os aspectos, ficava à proa. Não tinha convés, nem sala de estar, nem bar. A sala de jantar ficava enfiada no bojo, era apertadíssima, muito suja e acumulava também as funções de sala de estar durante o dia e de dormitório, para muitos passageiros, durante a noite. Os camarotes eram poucos, pequenos e mal cheirosos e os beliches desconfortáveis e apertadíssimos. Além disso, a sua colocação à proa do barco, tornava-os muito incómodos, sobretudo durante viagens em que a agitação mais acentuada do mar provocava um balouçar maior do navio e extremamente ruidosos, pois ficavam debaixo dos guindastes do porão da frente. Assim como os camarotes, todas as instalações desta [terceira] classe, incluindo a sala de jantar e a cozinha eram tão pequenas, tão apertadas e tão promiscuas que a maior parte dos passageiros que navegava com bilhete de terceira, fugia dali como o diabo da cruz, preferindo acomodar-se ao longo dos corredores, ao lado dos porões, ou até pelo convés das outras classes, embora, neste caso, a permanência fosse sempre condicionada pela tolerância da tripulação. É que por toda a terceira classe proliferava um pestilento e emético cheiro a vomitado, a latrinas nauseabundas, a comida mal cheirosa, ao bafio dos beliches e até a bosta de vaca, dado que ficava porta a porta com o porão onde viajavam os animais.

O Carvalho Araújo, no entanto, perdura na história dos Açores e na memória de todos os açorianos, de modo muito especial dos habitantes das Flores e Corvo, para quem a escala do navio nestas duas ilhas tinha um significado e uma importância transcendentes.


Carlos Fagundes

5 comentários:

Anónimo disse...

Que giro! :))

Anónimo disse...

Carvalho Araujo lembro-me muito bem quando ele chegava ao Porto das Lajes era naquele tempo dia de são Vapor.

Anónimo disse...

Já viagei nesse barco,era aínda criança mas não me lembro de quase nada dele,talvez viagei na terceira classe porque o dinheiro não existia,obrigado ao sr. Carlos Fagundes por recordar essas coisas que muitos dos novos talvez nem acreditam que existia.

Anónimo disse...

Adorei ver a foto do Carvalho Araujo e mais ainda ler a história dele. Eu tinha 7 anos de idade quando viajei pela primeira vez no Carvalho Araujo, na terceira classe claro.A viagem durou 2 dias, era a minha primeia viagem adorei. Lembro-me do cheiro não ser muito agradável mas como criança que era isso não era problema.

Anónimo disse...

Foi com muita alegria que acompahei o programa 35 anos da RTP Açores na minha linda Ilha das Flores, hoje estive a ver o programa da Freguesia da Lomba, Freguesia esta que nos anos 60 cheguei a ir de manhã ainda escuro buscar sopas do Divino Espirito Santo de promessas de pessoas da freguesia que imigravam para América.Houje na mesa estava linda e com muita fartura mas uma coisa me fez chegar as lágrimas aos olhos as escaldadas cosidas na chapa da lareira que muita refeição passei.Um Lajense ausente.