«Brumas e Escarpas» #8
Mãe Coragem
Meu avô era um pequeno médio lavrador. Tinha duas vacas leiteiras, uma junta de gueixos para a canga, algumas terras de milho, outras tantas de mato e várias relvas. No Mato tinha a relva do Queiroal, onde, no Verão, soltava o gado alfeiro e, ali logo no cimo da Rocha, a terra do Bracéu. Bem precisava ele, pois, de braços fortes para o ajudar nas lides dos campos, nas tarefas agrícolas e no arranjo e trato do gado. Os primeiros rebentos nasceram meninas e os rapazes, na sua maioria, vieram mais tarde. Umas e outros, no entanto, iam-se escapulindo e zarpando para a América, para o Convento e até, no caso dos rapazes, para a tropa.
Para o ajudar no trabalho agrícola, ficou uma das primeiras filhas, Angelina de seu nome, que, mais tarde, foi minha mãe. Angelina nascera forte, robusta e saudável e logo se tornou jovem moçoila, valente, trabalhadeira e afoita. Depressa se havia de lhe traçar o destino. Assentava-lhe tão bem o trabalho árduo e duro dos campos, a ele se adaptando com mestria e dedicação. Enquanto o Sol lhe ia tornando trigueiro o rosto e o cabo da enxada lhe calejava as mãos, lá ia ela, dia após dia, à chuva, ao vento e às tempestades, pés descalços, foice ao ombro, rodilha à cabeça, aguilhada na mão, calcorreando atalhos e veredas, saltando grotas e tapumes, perfurando madrugadas cinzentas e nevoeiros obnubilados.
Tanto sachava milho na Bandeja como ceifava erva na Figueira, tão facilmente carregava à cabeça cestos de batatas e de inhames, como se agarrava à rabiça do arado abrindo sulcos profundos, revirando e desfazendo as leivas enrijecidas, tão bem sachava, mondava e quebrava espiga, como rachava lenha e a empilhava ordenadamente debaixo do lar da cozinha. Subia a Rocha sem lhe contar as voltas e, ainda noite escura, e no regresso da ceifa da Alagoinha vergava-se sob os pesados molhos de lenha do Cabeço da Rocha. Soltava os bois da manjedoura e atrelava-lhes o corsão ou o arado, ordenhava as vacas, tirava-lhes o estrume e levava-as ao pasto. Desempenhava todas as tarefas agrícolas com perfeição, sabedoria e nobreza, carregando, sem queixumes, sobre a rodilha ou sobre os ombros, o peso inequívoco dos produtos das colheitas agrícolas.
Trabalho digno, honrado, humilde, verdadeiro e empenhado o seu.
Conta-se que certa tarde foi com meu avô às batatas-doces para o cerrado das Furnas. Cortaram a rama, cavaram a terra, sacudiram as batatas e limparam-nas de forma a encher um grande cesto, que a família era muita. Voltaram: ele atrás com o molho da rama; ela à frente, descalça, formosa e segura, de tez morena e bochechas bem avermelhadas, a respingar suores e a arfar cansaço, com um enorme e pesadíssimo cesto à cabeça, bem acaculado e a abarrotar de batatas-doces. Subiu a rua Nova, atravessou as Courelas, entrou na rua Direita e aproximou-se da Praça, onde muitos homens ali se tinham sentado, passando a tarde inteira a descansar, a falquejar, a tagarelar, a comentar, a gozar e, pior ainda, a injuriar, a difamar e a meterem-se na vida alheia.
Ao vê-la com tal carrego à cabeça, logo se insurgiram com ditos e palavras que punham em causa a veracidade do que trazia no cesto. Que era bazófia! Que não podia com um gato pendurado pelo rabo, muito menos um cesto tão cheio de batatas-doces. As insinuações transformaram-se em desconfiança e esta em descrédito. Que aquilo não era tudo batatas. Que para mostrar que era forte, de certo enchera o cesto, por baixo, com a rama leve e apenas lhe colocara duas dúzias de batatas no cimo, para disfarçar. Aldrabona! Trapaceira! Mentirosa! Bem enganava as mulheres, mas a eles, homens rijos e valentes, discretos e trabalhadores, é que não!
Angelina, indignada com tamanha injustiça e tão desmesurada aleivosia, não se conteve, nem esteve com meias medidas e vai disto: aproximou-se dos sacripantas e, perante o espanto e espasmo de todos, chapou-lhes com o cesto das batatas mesmo ali, no meio da Praça, em frente às ventas de tão injustos difamadores.
Ah! Grande mãe! Que coragem!
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
2 comentários:
que grande mãe,devia ter continuado a andar e mandava aqueles homens levar onde as glinhas levam.
A história da Sra. Angelina fez-me lembrar uma que eu fiz ao meu tio quando tinha os meus 14 ou 15 anos. A minha mãe sempre tinha muita falta de lenha para queimar. Um dia o meu tio passou á nossa porta com um grande molho de lenha seca. Eu disse-lhe "tio deixa ficar aqui mesmo" responde ele"leva lá se queres"Eu cheguei-me para perto dele e ele deixou cair o molho sobre as minhas costas. Era pesadissimo, eu mal que podia andar debaixo daquele pesadelo mas consegui chegar ao picadouro da lenha. Lá tirei a corda e devolvia ao meu tio que continuava parado no mesmo lugar que me tinha dado o molho. A minha mãe que observava tudo isto só exclamava "rapariga o que é que estás a fazer" A mãe ficou com lenha seca para a semana e o tio ficou com a corda.
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