sábado, 14 de maio de 2016

«Brumas e Escarpas» #105

Os pincéis de caiar

Na Fajã Grande, na década de 1950, a maioria das casas de habitação eram caiadas, tanto interiormente como exteriormente. Relatos vários, no entanto, diziam-nos que em tempos idos as casas da freguesia mais ocidental dos Açores não seriam rebocadas nem pintadas e eram cobertas de palha.

Mas as casas com as paredes caiadas com cal, por razões de higiene e saúde e também para não se deteriorarem, necessitavam de ser caiadas de vez em quando, evitando assim o aparecimento e alastramento de humidade, musgos e limos, portadores de bactérias e outros micróbios causadores de doenças epidémicas e mortais. Além disso, sobretudo devido ao aspeto exterior, as casas caiadas ficavam todas brancas, dando um certo embelezamento não só às mesmas mas também à freguesia, pelo que muitas vezes até eram caiadas por altura do casamento de um filho, da chegada de um parente americano ou nas vésperas da festa da Senhora da Saúde.

Geralmente, embora houvesse alguns caiadores especialistas na matéria, muitos dos moradores na freguesia é que caiavam as suas próprias casas, comprando apenas a cal e fazendo eles próprios os pincéis, poupando assim algum dinheiro. A cal era comprada nas lojas, em pedra ao quilo. Colocada num bidão de petróleo cortado ao meio ou até numa pia de água, era-lhe deitada em cima água. A cal começava a ferver e ficava sob a forma de fluido. De seguida era mexida com um pau e, pouco depois, estava pronta para caiar.

Mais difícil, embora mais barato, era conseguir os pincéis. Para tal era necessário ir ao mato apanhar o bracéu de que eram feitos. Na verdade o bracéu apenas nascia e crescia no mato, logo ali por cima da Rocha, fazendo jus do seu nome, pois partilhava-o com o do próprio lugar onde florescia o Lugar do Bracéu. Como as terras onde desabrochava eram grandes e ficavam longe das casas, a sua apanha, corte e acarretamento demorava uma manhã inteira, sendo neste caso retirada uma pequena quantidade para fazer os pincéis quando fossem necessários. Paralelamente, arranjava-se um cabo de madeira, adequado e fios barbante.

Escolhido o melhor bracéu, era feito um rolo grosso, que depois era dobrado a meio e muito bem amarrado. Por sua vez o cabo era enfiado na parte em que o bracéu dobrara, sendo novamente muito bem amarrado e ainda melhor apertado. A extremidade oposta ao cabo, constituída pelas pontas, era muito bem aparada de forma que se aproximasse duma superfície lisa. Estava feito o pincel, que uma vez molhado na cal, caiaria a casa. Mas por vezes as paredes das casas eram altas e as escadas rareavam. Assim o caiador munia-se de um enorme pau ou de uma cana de bambu ou na ausência desta, duma simples cana, fazendo-lhe um buraco numa das extremidades. Enfiado o cabo do pincel neste buraco, ele era amarrado à cana, de tal modo que não se desprendesse, conseguindo-se assim, com arte e engenho chegar e caiar os pontos mais altos das paredes das casas sem recurso à escada e sem a perda de tempo de a subir e descer vezes sem conta, a fim de a ir mudando de sítio.

Como muitos outros utensílios de fabrico artesanal, os pincéis de caiar as casas perderam-se no tempo, sendo hoje, caso existam, uma objeto de museu.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma das plantas endémicas dos Açores é a "Festuca petraea", popularmente conhecida por bracel ou feno da rocha. Surge nas falésias desempenhando as suas raízes um importante papel contra a erosão. Presumo ser essa a planta usada nos pinceis, conforme o referido neste artigo.