domingo, 8 de maio de 2016

«Todos ilhéus», por Nuno Costa Santos

Ao me saberem açoriano, diversos continentais perguntam: "Nunca te fez confusão viver numa ilha?". Mesmo muitos dos que se encantam com as paisagens e o acolhimento, contam-me de um ocasional sentimento de claustrofobia, confessam que por vezes se sentem agoniados por estarem rodeados de mar, por não poderem atravessar fronteiras terrestres, fugir para outra banda, dar uma volta de carro até ao país do lado.

Respondo que não. Que nunca tive esse sentimento quando vivia a tempo inteiro na ilha de São Miguel, nem o tenho sempre que regresso a casa e por lá fico, em trabalho ou em férias. Que nunca pensei: "Vivo numa ilha, estou tramado". Revelo até um escândalo: durante o meu crescimento nunca pensei que vivia numa ilha. Nunca reflecti sobre o assunto, muito menos acompanhado de bibliografia.

Nunca passei um minuto a matutar nas questões do "mar por todos os lados", do "isolamento", da "solidão", da "limitação". Estava demasiado preenchido. A ilha era a minha terra, onde tinha vivências contraditórias, umas alegres, outras não, como acontece em qualquer lugar do mundo.

Nem na fase das inquietudes habituais quis levantar voo para território distante. Na adolescência nunca senti o desejo urgente de me ir embora. Viajar para o continente e aí viver era apenas o percurso normal de quem havia terminado o liceu e queria prosseguir os estudos. Não passei tardes no quarto a fantasiar com a vida lisboeta e não fui para cima de uma rocha como um poeta romântico a imaginar os mundos "cosmopolitas" para lá do horizonte. Era feliz onde estava - tanto quanto pode ser feliz um adolescente. Com a sorte de ter uma família, um grupo de amigos, namoradas, uma vida cultural feita de muitos discos, livros e filmes que nos chegavam de fora com a velocidade certa, de beber fininhos bem tirados em cervejarias onde se falava, se debatia e se asneirava. A ilha nunca teve qualquer dramatismo, esse tipo de dramatismo de quem a vê de fora, mesmo quando está dentro.

A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas e de que quer sempre ir mais além do que o espaço que habita é um cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana. Claro que não me refiro ao sonho emigrante que muitos açorianos tiveram em alturas de dificuldades extremas. Penso naqueles que têm condições materiais mínimas e alcançaram à sua maneira uma posição de conforto e de pertença a uma comunidade com virtudes e naturais defeitos. Muitos deles, claro, associados ao desporto federado de comentar a vida dos outros.

É curioso perceber que muitos dos visitantes que partilham este sentimento repentino de estarem encerrados no meio do Atlântico, quando voltam ao ninho, pouco saem dos seus circuitos habituais. Pouco saem do seu roteiro, seja pessoal ou profissional. Não visitam bairros alheios. Não conhecem os nomes das avenidas, das ruas, das freguesias da sua cidade. Vivem em ilhas ainda mais pequenas que as ilhas onde por instantes se sentiram prisioneiros. Vai-se a ver e somos todos ilhéus. Pensem nisso.


Crónica do escritor Nuno Costa Santos, publicada originalmente na revista «Azorean Spirit - SATA Magazine», número 72.
Saudações florentinas!!

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Nuno,
Li e reli o seu artigo aqui publicado,gostei,pois aborda uma velha problemática,a começar por uma questão discutível que é saber se há ou não um povo açoriano,se é verdade que o mar nos molda,como intuía Nemésio, se insularidade é equiparada a interioridade,mas também encontrei nas suas palavras algo que pode explicar o sentimento que é atribuído aos micaelenses,de acharem que os restantes açorianos vivem em Ilhas e eles não. Daí a expressão muito usual,"o senhor é das Ilhas?",que sempre me fez impressão, embora não me incomode.Será que querem dizer,mas não dizem "das outras Ilhas?", porque não duvido que sempre souberam da sua existência. Sempre pensei que fosse apenas por viverem numa Ilha grande,onde por por vezes,de facto, se tem a sensação de mais continuidade territorial.
Mas no essencial estou de acordo consigo,quaisquer que sejam as razões,nós vivemos bem com a insularidade,não obstante,por vezes sofrermos com os seus efeitos.Como vivo numa Ilha pequena,onde esses efeitos mais se fazem sentir,já tive a oportunidade de aconselhar a quem para cá fala em vir,que se tem essa predisposição e vem para cá a prazo, riscando os dias no calendário, é melhor não vir.
Eu gosto da minha Ilha, Flores,embora não esqueça que ela muitas vezes me faltou com o que muitos açorianos têm.
Não leve a mal a franqueza. Cordiais cumprimentos.

Anónimo disse...

A forma de estar dos Açorianos varia de ilha para ilha e muitas vezes dentro da própria ilha. Mas há traços que marcam todos. A religiosidade, o apego ao lugar onde se nasceu, a largueza de horizontes que o mar induz e a solidez de atitudes forjada pelas contrariedades da natureza - mares bravos, abalos de terra, futacões e deslizamentos de terras - uma certa timidez face ao continental, são um traços comuns a todos.

O povo micaelense tem os traços de cima. Há contudo na classe média e média-alta micaelense uma coisa chamada "complexo da continentalidade", provavelmente fruto de uma excessiva timidez face ao continental. Fazem às outras ilhas o que Lisboa lhes fez... Querem que os olhemos, como eles olham Lisboa... Eles são "o continente", superiores portanto, os outros são "das ilhas", inferiores, coisa que eles não são...

Os rapazes de São Miguel no inicio do século XX mutilavam-se para não irem para a tropa porque no continente sentiam-se inferiorizados quando os gozavam pelo sotaque... A fechada classe alta micaelense, apenas admitia casamentos fora do seu ciclo com oficiais do Exercito que vinham do continente (alguns perfeitos pés rapados ou "fala baratos"), porque intimamente os olhava como "superiores" ou os "modelos civilizados de fora"... Esta situação não era exclusiva de São Miguel, sendo também comum na Terceira.

Isto diz muito sobre a nossa personalidade colectiva.