Aldeia da Cuada, uma ilha dentro da ilha
Raul Brandão em «As Ilhas Desconhecidas»: “É a voz da floresta adormecida que me extasia juntamente com o ruído das águas, o mais límpido e o mais belo que conheço para esquecer o tempo e a eternidade!”
A aldeia foi sendo relevantada do chão, casa a casa. Hoje, já vemos projectos parecidos pelo país. Mas estamos a falar de “há uns 26, 27 anos. Não se falava sequer em turismo rural. Foi a primeira do país a ser classificada como Turismo de Habitação”, lembra o pioneiro Carlos Silva, depois classificada como Turismo de Aldeia. Seria a única deste género no arquipélago (foi entretanto feito projecto similar em São Miguel, no Sanguinho) e agora é também património protegido, para que não surjam surpresas “de betão” e para que este seja um santuário de história e intimidade – até há bem pouco tempo o único acesso à aldeia era por um caminho velho, um longo e florido caminho murado e vegetal (belo de tirar o fôlego), que começava na Igreja de Santo António de Lisboa (tal como se lê na fachada), na estrada para a Fajã Grande, e ia até à casa do Império do Divino Espírito Santo da Cuada, entrando-se então na aldeia posta no sossego do seu planalto.
Actualmente já há acesso viário directo à recepção — que é também um pequeno museu da aldeia — à entrada. Mas, ainda assim, para circular por aqui, só a pé por caminhos de pedras que não são para todos (Carlos reconhece que ainda falta uma adaptação para cidadãos com dificuldades de mobilidade). Isto dito, carregar as malas de uma ponta à outra da aldeia ainda custa — não há problema, Sílvio, que cuida da aldeia, leva-as a trote e garante que “não custa nada”, estão habituados (nós experimentámos, custa).
A conservação dos caminhos “tal como eles eram” pode ser uma teimosia, mas faz parte do conceito global do casal de ser fiel ao ambiente original sem adulterar mais que o necessário. As casas foram reconstruídas com a sua pedra, adaptando-as aos tempos modernos, mas seguindo a sua “construção pobre” pedra sobre pedra. No início até era tudo mais primitivo ainda. “As primeiras casas que alugámos foi até com lamparinas a petróleo, não havia luz eléctrica.” É então que aponto para o único detalhe disruptivo neste onírico éden: postes e fios que cruzam algumas partes. “Estamos a tentar fazer com que isso desapareça daqui...”, diz. A ideia é passá-los em breve a subterrâneos.
“Bom dia, sejam bem-vindos”, diz-nos agora Teotónia, a cara-metade da Cuada, que, acompanhada pela filha, ultima os preparativos da maior casa da aldeia, onde há seis quartos e também sala para pequenos-almoços. Tal como por todas as casas, debruadas a pequenos detalhes íntimos e familiares, também por aqui se vêem utensílios de outras épocas e quadros de exímios bordados. “Muitas são coisas que já tinha, outras vou adquirindo, não tenho formação nenhuma em decoração nem nada disso, mas vou vendo as coisas e vou por intuição”, confessa Teotónia, contando que antes fazia “muitos crochézinhos” mas agora já não. “Estes vieram do Pico, de onde é o meu marido, foram oferecidos pela minha sogra, são lindos, obras de arte”. E são. “Isto tudo é um trabalho de pormenores, assim é que dá gosto”, sorri. É também tudo isto que retira a carga Disney que sempre paira sobre um projecto assim.
Até porque a família Silva também vive na aldeia, intercalando-a com a sua casa em Santa Cruz. A aldeia continua, igualmente, fiel às suas raízes e nem toda está apenas entregue ao turismo ou às visitas de passagem. Por exemplo, aqui estamos agora na casa do Império do Espírito Santo da Cuada, provavelmente o mais antigo da ilha das Flores, ainda e sempre, apesar do esvaziamento da aldeia, pertença da irmandade e parte dos festejos destas grandes e solidárias festas açorianas. Acaba, aliás, mostra-nos Carlos, de ser restaurado, incluindo modernizações (casas de banho, por exemplo, ao lado) e, na casa, também as imagens e símbolos religiosos rebrilham de dourado, azul e vermelho. Está tudo pronto para a festa anual — que inclui partilha de carne entre os “irmãos” —, que foi agora em Maio, precisamente.
Continuamos a cirandar pelas casas, paramos para sentir o cheiro intenso das flores num recanto, noutro os loureiros, prestar atenção ao que nos dizem os melros e tentilhões noutro. E ali no meio do campo, aponta Carlos, estão outros habitantes importantes, a vaca Mimosa e a burra Florentina. A cabra Tina também deve andar por aí. Mantendo ainda a tradição, na aldeia também há agricultura. Para já, só pelos proprietários. Mas em breve querem abrir a horta aos hóspedes: “Podem ir buscar uma couve para o almoço e plantar outra.” Nada como meter as mãos na terra para vivê-la melhor.
E assim revivida, a Aldeia da Cuada, continua, de certo modo, a ser familiar. Não só porque “muitos turistas, muitas famílias, voltam todos os anos e ficam na mesma casa, até”, como lembra Carlos, mas também porque, não esqueçamos, este é um projecto familiar, é agora, afinal, a aldeia dos Silvas. E a memória de quem cá viveu não se apaga nem permanece apenas em cenário: cada casa tem o nome de quem lá vivia, como se de uma “identidade” se tratasse. Nós ficámos na Casa Fátima mas há a Casa da Esméria, da Luciana, do Antonino, do Fagundes… A última, a derradeira a ser terminada, é a Casa do Luís.
Crónica: edição especial do suplemento «Fugas» do «Público».
Saudações florentinas!!
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