quarta-feira, 1 de junho de 2016

É preciso uma aldeia para criar uma ilha

É um portal com caminhos para paraísos logo ao virar da esquina e é também um marco em si própria. Ao longo de quase três décadas, esta aldeia abandonada foi recuperada com dedicação por uma família. A última casa original, a décima sétima, foi agora terminada. Aldeia da Cuada, uma ilha dentro da ilha.

Catrapisco os olhos e sei que já há uma luzinha ténue a invadir-me os sonhos. Afasto a manta de retalhos e ajoelho-me à janela de pedra. O dia começa a clarear, o céu e o mar parecem ainda a mesma coisa. Vou descalço até ao jardim da minha casa de pedra.

Está um silêncio impossível, apenas acompanhado do chilrear de uma orquestra da passarada. Fico a admirar tudo isto, quadro inteiro de pedra e verde, como se o momento abarcasse toda a aldeia, toda a ilha.

É certo que a ilha das Flores dá-nos uma explosão de muito, toda uma natureza de mãos largas, entre lagoas, cascatas em catadupa, poças oníricas e uma costa de beleza brutal, fajãs de fábula e grutas assombrosas.

Nunca nos iludamos: é tudo da natureza, sim. Mas também é tudo do engenho humano, da incomensurável persistência açoriana. É também esse o caso desta aldeia velha de séculos reconquistada por dois pares de mãos. Já não é a aldeia que era, é museológica e turística, mas é ainda e sempre a Aldeia da Cuada.

“Foi toda abandonada até aos anos 1970, só havia duas casas ainda com telha, o resto estava tudo em ruína”, diz-nos Carlos Silva, que com a esposa Teotónia, ambos hoje com 66 anos, tornaram a Cuada o projecto das suas vidas. São quase três décadas de dedicação a esta obra que, por sinal, atinge agora um marco: a recuperação da última construção original, a décima sétima, contando palheiros reconvertidos. “Isto começou tudo com uma asneira”, conta-nos Carlos enquanto vamos serpenteando pela aldeia, repartida pelas casas quase isoladas umas das outras, entre caminhos de lajes e jardins.

A “asneira” para eles, que costumavam ir veranear para a Fajã Grande, ali a dois quilómetros, foi comprarem uma das casinhas abandonadas na aldeia nos anos 1980. Já não restava ali ninguém, nesta terra que remontará a 1676. O documento mais antigo será até um registo paroquial de casamento de 8 de Novembro de 1705, está visto que o mote romântico perdura. Mais de três séculos depois cá estamos, nesta aldeia abandonada em grande parte em nome da emigração, que até há pouco nunca tinha visto um veículo motorizado (nem, diga-se, água canalizada ou electricidade).

Ora, depois de comprarem uma das casinhas, surgiu a oportunidade de comprar outra, depois outra. Começaram seriamente a pensar num projecto turístico, conta Carlos, que trabalhava nas Finanças, e Teotónia, que trabalhava na Sata. “Não foi fácil”, lembra: a Direcção do Turismo da altura, por exemplo, até “considerou louvável a iniciativa” mas não aprovou. “Diziam que nunca iria ter viabilidade económica.” Quem é que quereria vir para esta aldeia perdida nesta ilha perdida nas lonjuras atlânticas de Portugal, aqui mesmo de onde podemos olhar para aquele que é ponto mais ocidental do país, o ilhéu de Monchique e, virando a cabeça, pela série de cascatas lá ao longe, do outro lado, como nascendo de um céu verde? Quem? Nós? Sim.


Crónica: edição especial do suplemento «Fugas» do «Público».
Saudações florentinas!!

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