O desastre do Corvo
Quase todos os anos por altura da Festa da Senhora dos Milagres partia da ilha das Flores uma lancha com pessoal da Fajã Grande para participar na mais importante e maior festa da ilha vizinha. Muitas famílias da mais ocidental freguesia açoriana tinham os seus amigos e conhecidos no Corvo, em casa de quem se hospedavam sempre que ali se deslocavam para a festa, ou simplesmente para efectuar algum negócio ou por outro motivo qualquer. Pela Senhora da Saúde, acontecia o contrário; eram os corvinos que então se deslocavam à Fajã, hospedando-se nas casas dos que lhes haviam dado guarida pela Senhora dos Milagres. Algumas pessoas da Fajã até seguiam para Ponta Delgada a pé e daí, da freguesia das Flores mais próxima do Corvo, faziam viagem para aquela minúscula ilha.
Corria o ano de 1942. Muitos peregrinos da Fajã decidiram ir ao Corvo à Festa da Senhora dos Milagres, uma tradição que se mantinha desde há muitos anos. Organizou-se a excursão, fretou-se o gasolina e na tarde do dia treze de Agosto com quarenta e cinco passageiros, quase todos da Fajã e da Ponta, partiu do cais com destino ao Corvo o gasolina Senhora das Vitórias, também conhecido pela Francesa. A partida atrasou-se e a embarcação chegou ao Corvo já noite escura. Ao aproximar-se da ilha, o mestre viu uma luz em terra e, cuidando que era o pequeno farol que indicava o porto, rumou a terra. Infelizmente a luz não era a do farol, nem o porto era ali e o Senhora das Vitórias enfiou-se, precipitadamente e de rompante, sobre as baixas dos Laredos, abrindo um enorme rombo a meio, enchendo-se de água e provocando grande pânico entre os passageiros. A confusão foi geral, a precipitação tremenda e o terror gigantesco. Não havia luz alguma por ali perto, cada qual procurava salvar-se e salvar os seus familiares que a muito custo encontravam ou nem chegavam a encontrar, acabando por perder a vida neste acidente dezasseis passageiros e ainda um dos proprietários da embarcação de nome António Jorge de André Freias, residente nas Lajes. Da Fajã Grande morreram: António Cardoso de Freitas, Maria Garcia Ramos, Elvira Vitória Ramos, Maria dos Anjos Freitas Henriques, Ercília Garcia Ramos, José Inácio Luís, Glória Barbeiro, João Furtado Sousa, Ana Fagundes e Violante Cândida. Da Ponta faleceram Lídia Freitas Dias, Aurora Inês Freitas, José António Filipe, Manuel Furtado Silveira e Teresa Serpa. Também perdeu a vida neste acidente José Caetano Gangão, natural e residente da Fajãzinha.
Diziam as pessoas mais antigas que quando a notícia, no dia seguinte, chegou à Fajã, “parecia um dia de juízo”, pois todos os que tinham familiares embarcados na véspera para o Corvo cuidavam que eram eles os falecidos. A freguesia encheu-se de gritos e de prantos, de confusão, de terror, de angústia e desespero, à medida que os nomes dos mortos iam sendo conhecidos.
No entanto, no Corvo, as autoridades e os responsáveis pelos destinos da ilha, com os limitadíssimos recursos e meios de salvamento que dispunham, tentavam recolher os náufragos e prestar auxílio às vítimas. O local, porém, era longe do povoado e de difícil acesso. Os meios de transportes nulos e os náufragos, quer os mortos quer os vivos, foram transportados a ombros. Havia apenas um médico na ilha. Após muito esforço conseguiram levar os mortos para a Casa de Espírito Santo do Outeiro, onde foram estendidos no chão, sem lhe serem prestados os primeiros socorros, não sendo, provavelmente, assistidos da melhor forma.
O desastre do Corvo que assinala o dia mais trágico da história fajagrandense perdurou anos e anos na memória de todos e muito especialmente na dos familiares daqueles e daquelas que tão tragicamente perderam a vida, naquela fatídica noite de 13 para 14 de Agosto de 1942.
Contava-se que a única criança que viajava se salvou. Um dos passageiros instintivamente ter-lhe-á pegado, trazendo-a para terra sã e salva. Só que esse salvador terá voltado atrás na tentativa de salvar algum familiar, tendo infelizmente perdido a própria vida. A criança salvou-se, mas nunca soube quem foi o seu salvador.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».